I
talvez ainda devore o pão
amassado no suor do meu rosto
temendo o pó que me assalta a sepultura
II
teimo em ordenar aos bichos
novas regras
organizando-os a meu bel-prazer
III
ainda assim resta a lembrança
do jardim, dos céus e da terra
da chuva impossível que fez brotar as sementes
IV
longe estão já
os tempos do diluvio
quarenta dias e também quarenta noites
V
os que se salvaram
são os heróis prometidos
que carregam punhais escondidos
VI
geraram-se filhos, geraram-se filhas
e eis que fomos corrompidos
numa terra tingida de sangue
VII
duzentos e cinco anos
com as mesmas palavras
atravessadas na garganta
VIII
e toda a eternidade
com o estranhar
do dialeto do vizinho
IX
assim me marcas: homicídio não consumado
assim me desculpas: mas os outros não
assim me condenas: entregue a mim próprio
X
apenas quis perceber o teu lugar
apenas quis saber o que pensar
mas o teu rosto não assome no horizonte
Fotografia Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/