«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

esventrado XXVI

a tua cama
é o abismo onde gosto de me perder
os teus lençóis
carregam a sujidade que me viciam
o teu quarto
abriga os meus ossos partidos

oferta-me
o gelo do teu toque
o odor a alfazema dos teus lábios
o punhal que cravas na carne

que o veneno, o teu veneno
seja a última coisa que conheço

o teu quarto: frio, o teu quarto: vazio, o teu quarto: assombrado, o teu quarto: o vicio, o teu quarto: o fim

não importa a dor, tudo acaba em si

domingo, 25 de novembro de 2012

Balada XXII


sem mais delongas
é chegada a hora de me despedir
amigo que te sentas comigo
nesta mesa esquecida num canto qualquer

esvaziamos as garrafas
enchemos os copos
fumamos todos os cigarros
medimos o tempo
olhando pela lupa
enquanto riscávamos os dias em dobras na pele

lá fora a noite
lá fora o dia
em nós as trevas
encerradas no peito húmido
saturadas de ar bafiento
lá fora o dia
lá fora a noite
em nós o vazio
que cresce dentro dos ossos
e queima o que resta das entranhas

há muito que fomos
há muito que esquecemos o que somos
esqueletos sorridentes, histórias de assombrar

despeço-me de ti, querido amigo
sem mais delongas
tu que há muito não te sentas à minha mesa
que há muito me ensinaste o sabor amargo da partida

e que sei eu ainda
amanhã alguém me virá buscar
mas muito antes de o caixão sair do umbral da porta
talvez tudo arda num ápice, talvez as paredes restem em pé

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

notas e só isso: notas

I
quantas valas
arrancadas ao ventre da terra
para conter toda a humanidade

II
quantas são ainda
as pedras que encerram
os homens que restam

III
fogo permanente
em falsas cruzes de pau
onde se assassinam os justos

IV
quantas palavras
quantas pedras
quanto tempo que nos resta

V
ventres vazios
vísceras no solo imundo
somos todos nados-mortos

domingo, 18 de novembro de 2012

esventrado XXV


ensaio a frio como cortar os pulsos
sentada num frio banco de ferro
a cidade adormecida
pelo menos finge que não vê
e o tempo cola-se nas espaldas
curva as costas, desenha sulcos no rosto envelhecido

uma moeda perde-se aos meus pés
não sou, não estou
não me olhem:
sou trecho fosco absorvido
pelos vossos olhos apressados

há muito que abandonei o banco
onde ainda me julgam
onde ainda juram me ver
há muito que deixei de ser
a suja estátua de pedra
contudo os pássaros ainda pousam na minha mão

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

esventrado XXIV


amanheceu em nós
a madrugada da vasta solidão

sobre corpos tombados
de pele arrepiada
de carne fria
de sangue inerte
o pesar do tempo líquido
que os afasta

de nada adianta jurar
que o mundo irá parar
que o céu não será um denso manto pendendo sobre nós
pois a escuridão caminha

lado-a-lado
a teu lado
a meu lado
e nós já aqui não estamos

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.pt/

domingo, 11 de novembro de 2012

esventrado XXIII

não ouço os meus pesados passos
sobre o chão

não sinto o peso do casaco
pendendo sobre os ombros

não vejo o meu reflexo cansado
no nevoeiro cinzento

e um manto de folhas amarelecidas
raspa o alcatrão
e um vaso com flores de plástico
é esquecido sobre o mármore imundo

cansaste-te de ler o meu o nome
deixaste-o preso em letras de bronze

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

purgatorium XXXIX

Desenham-se umas olheiras fundas debaixo dos meus olhos cansados. Uma tosse violenta acorda-me nas noites negras, abafa as corujas, abafa os lobos, abafa os ecos emaranhados na mente.
Aproxima-se o pesado inverno, ouço os seus passos moribundos, pressinto a sua respiração rouca do outro lado da janela. Aperto a gola do casaco, disfarço o medo.
Eu também já tive sonhos, mas isso foi em tempos, por agora esqueci-me.
Imagino o meu rosto do espelho: quem sou eu?
Porra, quem sou eu?

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

notas para fundo de mala

I
encontro uma caixa de fósforos
esquecida entre o forro da mala
e há tanto tempo que deixei de fumar

II
deito o corpo sobre a cama
vazio de ti, disforme
pele enrugada à espera

III
sinto o hálito doce
o teu corpo debruçado
perante a nudez arrepiada

IV
tardes frias de primavera
hotéis esquecidos
quartos imundos repletos de odores nauseabundos

V
grossos dedos, língua quente
molda-se a carne
pelos ossos que não lhe pertencem

VI
elevam-se montanhas de feno
afundam-se vales de sangue
mergulho no profundo de mim

VII
acendo um cigarro
prometo que será o último
não tarda encontro-te novamente

VIII
sim, não tarda encontro-te novamente
ou finjo que te encontro
no fim desta estrada

terça-feira, 6 de novembro de 2012

desAlinhado XXXIII

caminho sobre a noite
não a que já caiu sobre a cidade
mas a que a mim me assola

o frio instalou-se no espaço entre as costelas
entre a carne e os ossos
não agora, mas há muito tempo

restam-me
um rio poluído que desagua sem saber
as luzes de néon rosa de uma pensão
faróis amarelos de automóveis com rostos de estranhos
as vozes que vou calando em mim

procuro o mar que me inunda o olhar
alargo o nervo que me consome o corpo gasto

talvez amanheça em mim
outra vida, outra cidade, outro ser
que não se me consuma no peito

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Balada XXI

então, mandaram vir os médicos
mil médicos vieram e nada disseram
então, mandaram vir os físicos
mil físicos chegaram e rastos de nada encontraram
então, chegou a mensagem aos alquimistas
mil alquimistas morreram pelo caminho

as mulheres carpiam, soluçavam
no frio quarto adjacente ao seu
durante todo o tempo chovia
e o frio ganhava lugar no pele, na carne e por fim nos ossos

deixaram então de procurar
primeiro veio o silêncio da sua voz
os gemidos desapareceram debaixo do cantar da chuva
acenderam-se as lareiras
as mulheres cobriam o corpo com sujas mantas de lã
abafavam o rosto com negros véus

na solidão dos corredores:
o estalar da pele
o mirrar da carne
os ossos torcendo-se
rasgando músculo, deslaçando tendões
os lábios secos num sorriso moribundo
o sangue escorrendo lento pelo que resta do rosto 

então a chuva parou
e os sinos tocaram

chamaram os coveiros
chamaram os padres
chamaram os bruxos
chamaram as beatas
todos foram chamados, mais de mil

pesadas pás ferrugentas
jogaram-lhe mais de mil pazadas de terra
uma a uma ouviu-as cair
um baque surdo sob as tábuas
depois terra sobre terra sobre pedras sobre terra
de olhos bem abertos abraçou a escuridão
afagou o fato preto de fazenda: esperava

o meu homem
cessou no passado