«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares
quinta-feira, 29 de março de 2012
meus caros amigos, estarei ausente nos próximos dez dias, depois voltarei ao trabalho
até lá e sempre obrigada por me acompanharem nesta viagem, da qual são também participantes
Agora durmo tranquila de noite, o
seu bafo tornou-se inexistente. O seu murmúrio calou-se, sufocado em soluços.
Já não consigo ver a cidade, ouvi-la,
sentir o seu odor. Tenho quase a certeza que se a observasse agora, como
outrora, nua e estendida diante dos meus olhos, já não a reconhecia. Talvez
seja esse o motivo que me obriga a manter as cortinas corridas, os estores
fechados.
Se a visse agora, nem saberia que
a via.
Agora tudo, tudo é apenas mera
palavra, escrita com o alfabeto que me ensinaram, mas apenas uma sequência
vazia de letras e vogais.
[o vazio está aí, caminha para
aqui]
Já não tenho medo: do tempo, do
dia, da noite, da enfermidade, de ter fome, de ter sede, do ontem, do amanhã,
do hoje.
Deixei de amarrotar as folhas de
papel em bolas de aguçadas pontas. Lentamente foram despovoando o soalho de madeira,
dando lugar ao pó, um pó fino e cinzento, como testemunho do tempo vagaroso.
Ainda ouvi os seus ecos durante
as noites, abafados pelo negro do ar. Distinguia, nitidamente, os ruídos
estridentes da sua morte nas primeiras horas da manhã.
Vieram as chuvas, a estação do
frio. Veio o vento seco, a estação do calor. E chegaram finalmente os incêndios,
agora resto eu: cinza, só.
Deixei ficar a roupa tombada ao
pé da cama. Uma rodilha de trapos desbotados e gastos. Não fechei a torneira.
Teimei em não destapar o ralo da banheira. Mantive os estores fechados, as
cortinas corridas.
Não vi, confesso, não existem
reflexos meus nas ainda brilhantes superfícies esquecidas pela casa.
Saí, penso que saí, ouço o som da
porta a abrir, o som da porta a fechar, o ranger dos dentes de metal na
fechadura, no cansaço da mente. Devo de ter saído de casa, relembro passo a
passo o ritual.
Cheia de terra é a estrada que me
enfrenta, sem piedade. As suas curvas sinuosas perdem-se sob o meu olhar: o
primeiro passo e paro. À espera.
Fotografia do filme Naked City, de 1948, realizado por Julis Dassin
Não fiz nada de mim própria. Não
deixei que nada fizessem de mim própria, a mim própria.
Que valente paradoxo, mas eu não
sou eu, sou o outro. Escondido no armário, saindo para rasgar a carne com os
dedos infectos, à queima-roupa, sangrar a besta e rir, sem parar.
Quando eu sou eu própria: nenhuma
sombra se constrói sob o sol ardente, nenhuma ave pousa nos meus ombros,
nenhuma pegada fica marcada na terra, todas se escondem dentro dela: e ninguém:
a sonhar.
Um murro. Um murro forte: sinto o
nó dos dedos contra a pele, a massa dura do osso rasgar a boca do estômago.
Estranha sensação de felicidade. Estranha felicidade que me assalta o peito.
Cuspo sangue. Se tivesse um
espelho conseguiria ver uma pasta de saliva e sangue acumular-se nas gengivas.
Mesmo que chova, nada me fará esquecer este cheiro ferrugento que se liberta
das vísceras.
[Ele arrasta os seus sapatos bicudos
pela terra, penteia o cabelo, milimetricamente arquitectado com laca. Vejo o
seu casaco branco esvoaçar. Rasga um sorriso no rosto sisudo, e sai,
silencioso]
Nota para mim: já que tens de
viver, não te esqueças que só se morre uma vez, mas aos pedaços, em bocados. http://youtu.be/rNVzfeKuqtM
O meu corpo minga debaixo da
roupa, criando foles no pano desbotado e gasto. Desapareço no corpo que se
arrasta, debaixo da pele seca e áspera, entre músculo e carne cansados.
Às tantas a minha morte pertence
ao passado, inscrita nos anais malditos. No instante preciso, precioso, em que
os relógios pararam de medo ante gritos estridentes de demónios contorcidos.
Afinal não serei eu uma carcaça condenada
ao tempo líquido que se espalha, à procura de uns lábios que se beijem?
E as perguntas fazem-se, sem eco
de resposta: a vida sangrada, amaldiçoada. [por mim]
[sou figura desbotada pelo tempo da ausência] e então percorrias o meu corpo com mãos ávidas apertavas o meu pescoço rasgando as veias erguias cidades no violeta marcado na pele e prometias que um dia o oceano seria nosso [sou corpo magro com a mortalha do silêncio] e então destruías as cidades que conquistavas inundavas o peito com manchas de cuspo e o teu sémen era veneno correndo nas entranhas [sou frase feita que não sabe ler]
A viagem começa do outro lado,
não do oceano, não do continente, de mim.
Esta imagem, a mim só pertence: a
língua de alcatrão quente que se estende debaixo dos meus pés, o entroncamento
retorcido perante os meus olhos, que já pouco vêem.
A minha imagem, a minha viagem.
Observo as minhas costas, as
minhas pernas, a minha cabeça ligeiramente tombada, cansada: a estrada, ao
fundo, as montanhas que desconheço o nome, recortando o laranja do fim do dia
no céu.
Anoitece, toda a atmosfera
veste-se de negro. Uma ameaça de chuva para apaziguar o calor do dia. Nem um
resquício de água contudo.
Não devia ter fumado o último
cigarro.
O alcatrão some-se violento
criando um precipício sem fundo: a decisão, o primeiro passo.
Quando acordo, dou por mim na
sala. [Ainda aqui estás?]
[Já que me vais matar, podias ao
menos usar a tua melhor roupa, não?]. Saí da sala sob o violento som da porta a
fechar.
Pequenas agulhas percorreram-me
todo o corpo, enquanto o vapor da água quente invadia toda atmosfera da casa de
banho. Pequenas gotas escorriam pelos azulejos: escrevi o nome, de ninguém.
Não possuía roupa adequada para a
ocasião. Vesti um roupão de seda que me trouxeram de Pequim. No espelho o
dragão, bordado nas costas, ganhou vida, num reflexo fugaz.
A lâmina estava perfeitamente
limpa. Entrei na sala: vazia.
Na parede, a sombra esvanecia
perante o cansaço dos olhos. Senti a lâmina forçar a carne: resistência: a
sombra caia ao rés da parede.
[Podias ser mais rápida, não?] E
então senti que o meu corpo se esvaziava, com a sombra que tombava, de boca
aberta.
Sonhei hoje que morria, mas não
acordei. De verdade. O que me despertou do meu sono foi uma tosse violenta oriunda
do centro do corpo.
Uma sensação de lâminas frias navegando
na corrente sanguínea, que na sua passagem por veias e artérias [que sei eu de
corpo humano?] as cortavam. Como se todo o meu sangue fosse fugir de mim, numa
explosão pela boca.
Depois uma dor aguda sobre o peito,
o estilhaçar das costelas, apenas visível pela deformação da pele. E o ar
parecia que nunca tinha existido no quarto.
O barulho da tosse. O anunciar de
uma qualquer doença fatal.
Não acordei quando sonhei que
morria. Sempre estive preparada para morrer. O que eu não estou é preparada
para viver.
E esta é que é a tal saída
escondida? A libertação. anunciada nos livros proibidos das bibliotecas vazias?
De que adianta acreditar? Nos
dias? Nas noites? No tempo? No amanhã? Não existem pás suficientemente grandes
para carregar com tudo isto. Esta sujidade que se acumula aos nossos pés e nos
faz tropeçar.
E agora somos o corpo debaixo do
lençol.
Distantes estão os ruídos da infância, quase mudos: os
testos, as panelas, as gavetas, a chuva que assustava. Os nossos risos. Nunca
te perguntei se choravas? Nunca te vi chorar.
Tu choravas? [Tu fingias, eu
finjo agora.]
O sabor exageradamente doce da
cevada. O calor da água dentro da garrafa de vidro verde. A melhor sobremesa de
sempre.
Não, não sou eu que estou deitada
no asfalto. Não merecias que o fizesse, nunca. Eu estou aqui, apenas aqui, à
espera.
Quando fui colocada na escola de
Viatodos, o Jorge Pimenta foi, provavelmente, a última pessoa com quem falei.
As primeiras impressões que
guardo dele, eram de alguém distante, com um ar um pouco a fugir para o
convencido. Provavelmente as primeiras impressões que o Jorge tem minhas, são
de alguém um pouco estabalhoada e lunática. Nessa altura, a Laura ainda não
tinha nascido, mas começava o seu embrião.
Não recordo as primeiras palavras
que trocamos, mas quase posso garantir que remontam ao dia em que ganhei coragem
para lhe pedir um livro do António Gedeão.
Com o decorrer do ano, começaram
e continuaram, as trocas de cds, de livros e claro, de amizade.
Sem pensar duas vezes, aceitei o
seu convite para trabalhar no jornal da escola, O Despertar. Nascia também a
Laura Alberto, data de nascimento: 21 de Fevereiro de 2008. O Jorge sabe bem o
motivo.
[Amigo, não sou tão boa como tu
com as palavras, mas a minha gratidão não se consegue expressar da forma que tu
bem o merecias. Obrigada]
Um dia deixei de comprar o
jornal. Assim economizaria uns trocados, deixaria de sujar as mãos, e também
não me iria tornar numa vendedora de castanhas. Por isso, o jornal era
perfeitamente dispensável.
As notícias deixaram de me
interessar, de nada e em nada me afectavam. Não que vá cair na frase feita de
que, são noticias de ontem, apenas tinham deixado de ser importantes nos meus
longos dias, que se iam estendendo pela breve eternidade que me restava,
dolorosa na minha mente.
Ainda li folhas esquecidas ao
acaso pelas ruas da cidade, enquanto esperava pelo autocarro. Ainda fiz o papel
de parasita, ao ler as notícias que o passageiro do banco da frente me oferecia
involuntariamente.
Depois?, depois desisti. Desisti
do mundo, de todos.