«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

purgatorim III



Não podes passar o dia todo aqui sentada, dou comigo a falar comigo própria. Em silêncio, uma consciência que se esbate com o passar das horas.
Tinha me esquecido de dar corda ao relógio da sala, de correr as cortinas de pano grosso, de abrir as janelas, de como se articulam os lábios, de mudar a água nas jarras, do lixo que se foi acumulando, da entoação de uma pergunta, da afirmação de uma resposta, de como se fala, falando simplesmente.
A decisão de ir à casa de banho, procurar o meu reflexo num ínfimo espelho, arrumado algures no fundo do móvel. Ainda reconheço as mãos, ainda que envelhecidas, enquanto limpo o pó acumulado numa das faces do espelho.
Do lado de lá alguém prisioneiro, conto as rugas: uma, duas, três, quatro. Cansaço. Identifico cada um dos sinais escuros que começaram a crescer quando me fechei aqui.
Uma mancha escura cresce debaixo da linha dos olhos e mistura-se com o tom de pele escurecida. Olheiras. Encontro um cigarro meio fumado, mas não sei onde deixei o isqueiro.
Retorno à sala, com o cigarro apagado apertado entre os lábios. Finjo que o fumo, consigo ver o fumo subir em espirais pelo ar saturado que enche o espaço fechado da sala.
Talvez devesse ir ter com a minha gente, procurá-los lá fora, mas desconheço a localização precisa da saída.
Ainda me ouço, sabes usar a tua sombra que se alonga pelas paredes, para descobrir que estás, simplesmente à espera: morta? E que sangue é este que me circula inconsequente?


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

purgatorium II

 [Fotografia de Laura Alberto]


Do outro lado, o sinal de chamada, uma, duas, três, quatro, cinco… Desisto da espera. Não vou deixar uma mensagem, disparatada, numa máquina automática.
Não decorei nenhum número de telefone, mesmo que o tivesse feito seria talvez, um número riscado na parede de uma casa banho. Uma sucessão de dígitos aleatórios, que nunca me levariam a alguém. Ninguém.
Todas as esperas constroem-se de desespero. Há sempre um ponteiro viciado que não avança. Não procuro a salvação, procuro o fim. 
[a sua chamada encontra-se em lista de espera, queira fazer o favor de aguardar]

purgatorium I

Afinal é esta a minha função, aguardo os que tombam pela estrada, entre a cidade e o fumo. Uns serão poupados, outros não. São sempre em maior número aqueles que não resistem. Vá-se perceber o motivo. Poucos foram os que levantei, afastando o nariz em sangue do alcatrão, que me devolveram um brilho no olhar. Apesar da dor, um sinal de que a vida ainda existia e resistia.
Grande parte deixou a derrota sair vitoriosa e entregaram-se.
Precioso o momento, em que sentiam toda a sujidade do asfalto, quando o seu sangue se misturava com a água da sarjeta, fazendo boiar as beatas e os pedacinhos minúsculos de papeis.
Dois parágrafos e duas vezes a palavra sangue. Acaso poderia ter escrito de uma outra forma? Provavelmente sim, mas não o quis. Para mim o homem é feito de sangue, de carne, de pele. Alma? Alma se existe, corre nas veias, só.
Quando se desiste, o sangue esvai-se até se perder numa qualquer calçada, se for numa cidade estrangeira, perfeito.
Já me habituei a ser ignorada. As cortinas que se correm, as portadas que se batem, as portas que se fecham. Do outro lado, sinto o seu respirar ofegante e o medo que se apodera das suas mentes.
Um dia ficarei sozinha nesta cidade. Descobrirei por fim a tal felicidade. Todas as casas, vazias. Todas as ruas, desertas. Em todos os espelhos, a minha invisível imagem.
[Fotografias de Laura Alberto]

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

esventrado VII

dizem que a noite negra
existe para aterrorizar,
cobre o dia com o seu manto
e abafa a brancura das vozes

dizem que se deve fechar o corpo,
abafar a alma debaixo dos cobertores,
esperar o sono que oculta o corpo exausto
[é tão fácil fingir-se morto]

dizem que a noite foi criada
para esconder o desejo dos amantes
que vivem o com o gemido da boca de framboesa
enquanto acariciam a pele do lobo

dizem que a noite foi criada, há muito tempo atrás e a nós,
obrigam-nos aprender a morrer todas as noites
e vamos desconhecendo como viver com a aurora


Fotografia Man Ray, Rayographs

sábado, 18 de fevereiro de 2012

esventrado VI


quero a manhã, como
um bicho lânguido
deixando-me espalhada
inerte ao longo de ti

quero a prisão das
tuas paredes nuas,
beber o hálito gelado
da tua boca em veneno

quero afinal, a insónia nas
noites sem data,
a pele húmida
a secura salgada na língua

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

esventrado V


disfarçar é tão fácil
basta um riso sonoro que rompa o silêncio
um rasgar dos lábios, uma fileira completa de dentes

abrir os braços, paralelos ao chão
o que pisamos, o que cuspimos
rodar sobre os pés

acenar, cumprimentar
responder educadamente
cumprimentar, acenar

fechar, guardar e esconder
tentar ignorar o assalto
[os braços não chegam, não me chegam]

esventrado IV: depois


anoitece na cidade
estico as asas e julgo voar
já não passo naquela rua, a nossa rua
não conheço a companhia das pedras
e na calçada os nossos cigarros
há muito que foram varridos

depois,
há sempre um depois
tal como houve um antes
e ontem, ontem é cicatriz de nós,
o esquecimento um curto intervalo

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Manifesto CXXXIX


Post-Scriptum

as estantes ladeiam as paredes
do centro olho-as bem altas
livros e mais livros, papeis, documentos presos por fios
recordações de tempos distantes
fotografias de lugares esbatidos na memória

passo-lhe a mão
tento decidir um lugar para o abandonar:
bem lá no alto, longe do meu olhar
[não, não pode ser estarás sempre a fitar, adivinhar os meus passos]

sinto-lhe o odor
outra tentativa de escolha:
na prateleira de baixo, junto do pó, das passadas sem destino
[não, também não pode ser, são inúmeras as vezes que tropeço]

aperto-o contra o peito, decido: atrás dos arquivos
fecho os olhos
encontro o lugar aleatoriamente
ainda com os olhos bem fechados, coloco-o num sitio recôndito
aos encontrões contra as estantes e cadeiras
consigo encontrar a saída do pequeno escritório

[se bem que quando a noite chegar
ainda vou ouvir o seu abafado lamento

Jacques Brel-Ne me quitte pas

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

ninguém

ninguém que saiba
das ondas que nascem em alto mar
e morrem muito antes da orla da praia


ninguém que ouça
o gemido das folhas esquecidas
devoradas por ânsias enraivecidas


ninguém que conheça
o triste lamento de dentes escancarados
abafado por bocas arqueadas
ninguém que termine
ninguém que acabe
ninguém no espelho da casa de banho

desAlinhado XXII

Willst du ins Unendliche schreiten,
Geh nur im Endliche nach allem Seiten.
(Queiras tu dirigir-te ao Infinito,
Caminha em todos os sentido no Finito)
Goethe
e assim o vento passa
arrasta as cinzas remanescentes
entre noites despojadas sem mim

quartos abandonados
paredes nuas
camas vazias
corpos roubados sem alma

e assim o tempo corre
doloroso pela carne que ainda resiste
à espera do falacioso infinito

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

desAlinhado XXI

uma mancha que se alastra
pairando sobre a minha cabeça
que se alastra e alastra
até que sou absorvida pela escuridão


[e o vazio é o abismo que se estende
entre os passos e o porto que não se vislumbra]


queria saber onde se guardam
as chaves das portas inexistentes
compreender que nascemos,
nados-mortos, com a sentença definida
e todos os caminhos nos levam a lugar nenhum
e todos os sorrisos são de ninguém

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

esventrado III


e então eu pergunto
quantas vezes somos lembrados
escondidos nas noite frias?

e tu finges abrir os braços
assombrado pelo vento

e então eu pergunto
se ainda caibo dentro dos teus braços
se o peso do teu corpo é o mesmo
se na tua boca encontro a caverna de sempre

e tu finges abrir os olhos
para esconder a tua cegueira

e então eu pergunto
se recordas o sangue que nos corria nas veias
se ainda saboreias o sal da pele
se guardas a madrugada onde fomos só, sós

e tu, tão longe e tão distante
parece que nunca ouves

domingo, 5 de fevereiro de 2012

desAlinhado XX

de todas as coisas deixadas
à sorte pela mesa, pela sala
de todos os copos tombados
de todos os pedaços de papel:
escritos, rabiscados, amarrotados,
estrategicamente esquecidos
de todas as pegadas no chão
de todas as fotografias envelhecidas
de todas estações que passaram
de todos os aniversários fugidos


de todos nós, depois de nós:
o abismo dos nossos corpos
de todas as mortes possíveis

 

desAlinhado XIX


quanto tempo pensas tu
que vais esperar,
enquanto deixas que viscoso
se alongue o aviso?

quanto será o peso
dos dias que guardas
em segredo
nas gavetas sem fundo da tua mente?

e de quem será o rio
que te corre pelas pernas,
até que seque sem nunca
ter nascido?

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

cemitério XLI

[Não mais! Não mais! Que eu esqueça que te tive,
e tu me esqueças debruçado em ti!
Que tudo seja como outrora eu vi:
uma figura longe recortada...
Jorge de Sena]
  XLI 
temos de aprender a dizer adeus, abrir a mão e deixar a carne mirrar. nascemos nus, despidos de sentimentos, fraca a luz que aquece o corpo protegido. seguimos, vestimos a pele que nos oferecem, mas não temos por onde escolher. os reflexos são fracos, memórias apagadas de um presente que não se reconhece. despimos o colorido hábito com que nos ornamentam: somos cadáver à espera, à espera de aprender a dizer adeus, pois todos acabamos por descobrir que já nascemos mortos. [FIM]
 Nick Cave & The Bad Seeds - Hallelujah

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

balada XIII


se pensas que é tua, a lâmina
com que trinchas o animal
para lhe beberes o sangue,
depois de ouvires o seu gemido,
estás muito equivocado
essa pertence-me, como em breve o descobrirás

balada XII

está na sua natureza
esticar-se com os primeiros raios de sol
lânguido sobre a terra húmida,
saltar de muro para telhado
beijando o precipício,
enroscar-se nas pernas magras
de doentes esquecidos

está na sua natureza
acabar numa qualquer valeta
com os olhos bem arregalados