«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Crimes amorosos

XV
abraça-me, como só tu o sabes fazer, assim com toda essa tua força
abraça-me, consigo sentir o cheiro que se solta do teu cabelo, o que manténs desgrenhado, caído sobre os ombros para que o sinta acariciar o meu rosto
aperta-me, como se hoje fosse o último dia, assim com toda a tua coragem
o meu peito cola-se ao teu e respirámos o mesmo ar, pausadamente
aperta-me com toda a tua força, não tenhas medo, porque eu também não tenho:
parte-me os ossos, aqueles que consegues sentir debaixo da roupa, parte-os todos um a um e não fales enquanto o fazes, sou outra vez menina nos teus braços, uma boneca que carregas com uma só mão e arrastas os cabelos pela rua suja
não digas nada, abraça-me só, enquanto as gavetas se esvaziam

Antony and the Johnsons - Frankenstein

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

bala número catorze

quem foi morto hoje?
algures, numa página de jornal alva, violada por suja tinta negra, rostos apagados de pessoas esquecidas, ladeadas por caixilhos pretos.
todos os nomes que me lembro, todos aqueles que consigo lembrar.
quem foi morto hoje?
Alzira, Joaquina, Humberto, Diogo, Josué, D. Albina, Sr. Ferreira, D. Luisinha, Sr. Joaquim: foram mortos ontem. e quem foi morto hoje?
outros nomes, que não estes, serão pintados numa outra página de um qualquer jornal, de uma qualquer outra terra, outra língua, outro povo, outra raça.
quem foi morto hoje?

e mesmo assim amanhã será amanhã

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Manifesto CXXXV

o caruncho invade a mortalha

e que sei eu ainda
finjo entre paredes que se erguem altas, brancas e sombrias
surda perante o canto de abutres cobrindo o azul, que quase não vejo, que quase esqueci

e que sei eu ainda
esta terra que assento com os pés está humedecida de sangue
e o caminho que se avista, precipita-se em abismos negros

e que sei eu ainda
este ponteiro que não pára afasta-me de mim
este ponteiro sem piedade aproxima-me do fim




Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

a torre do relógio caiu mas ele continua na sua função de dar as horas

perdi os dias, os meses, os anos no calendário

ninguém

uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito

toda a cidade é uma ruína que se estende dos meus pés até ao horizonte que consigo distinguir
nove, dez

ninguém

onze

passo a mão pelo ombro, todas as feridas cicatrizaram, sinto debaixo da pele a sua forma irregular

entro no café: eu deixei de fumar e tu nunca fumaste mas sei, que se te cravar um cigarro guardas um no bolso para mim

doze

FIM
(esta história, café é o primeiro conto (curto) que escrevo, está dividido em sete partes, que tenho vindo a publicar aqui no blogue, provavelemente não escolhi o melhor alinhamento para ele e quem visita o blogue pensa tratar-se de poemas soltos, contudo depois de publicado na integra recomendo a sua leitura seguida, obrigada por lerem)

Crimes amorosos

XIV
enrolávamos as tardes nas pontas dos dedos,
voavam em círculos desajeitados no ar
abríamos o caminho entre raios diagonais de luz
e adivinhávamos as cores de lá de fora

adormecíamos, exaustos
para acordar, quando o frio da noite nos cobria a pele
e os nossos olhos brilhavam na penumbra
os meus olhos, os teus olhos: encontram-se

o meu corpo tem a forma das tuas mãos
a tua boca tem a forma da minha língua
a minha pele, veste a tua carne
a tua carne esconde-se na minha pele
somos: um

enrolo as tardes em espirais esquecidas

quinta-feira, 20 de outubro de 2011



quando finalmente me consigo mover: a perna direita, a perna esquerda, a mão esquerda, a mão direita, abro os olhos

estou numa fenda de terra, pedras, estilhaços que subo a custo
o primeiro raio de luz obriga os meus olhos a fecharem-se, habituo-me

à minha volta: ninguém, à minha volta carcaças retorcidas de ferro, pedras, cinzas, pó, cinzas e pó

também eu estou coberta de pó cinzento misturado com riscos de sangue que me escorrem pelos braços, pela face, pelo pescoço, pelos ombros

dor e ardência

(cont....)


(esta história, café é o primeiro conto (curto) que escrevo, está dividido em sete partes, que tenho vindo a publicar aqui no blogue, provavelemente não escolhi o melhor alinhamento para ele e quem visita o blogue pensa tratar-se de poemas soltos, contudo depois de publicado na integra recomendo a sua leitura seguida, obrigada por lerem)

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

a cidade amanheceu com uma névoa que nasce no rio
pelas colinas sinuosas sobem lembranças da noite passada
mas não tarda alguém virá recolher os despojos abandonados
pela calçada, pelos bancos, no tronco das árvores, na tinta suja das paredes

estica suavemente os braços, move muito lentamente os dedos
vai agarrar os primeiros raios de luz que corajosos rasgam o nevoeiro cinzento
não vai sentir frio e não vai precisar de um casaco

estremecem os paralelos com a violência das rodas dos automóveis
abrem-se as portadas das casas: liberta-se o ar encarcerado entre vigas e andares
a água corre nas canalizações e termina no rio:
cornucópias azuis, cornucópias chumbo, remoinhos de espuma precipitam-se para a foz

fechou os olhos e continuou acordada
ao fundo o ruído da cidade
adormeceu no preciso instante em que fechou a porta:
à sua volta o silêncio das pessoas apressadas


NIN - 1 Ghosts I - Nine Inch Nails


percebia agora o silêncio, toda aquela imobilidade que me rodeou, que me rodeia ainda

estou diante de ti: só falas com o teu olhar perdido enquanto desenhas os prédios que outrora rasgavam o céu: azul, cinzento, negro

o teu dedo desenha um arco, desde a tua perna até ao meu ombro, sinto-o tocar-me a pele: quente e frio

[sempre esteve aqui]

imóveis: a praça move-se lentamente à nossa volta, a torre do relógio nas tuas costas, a torre do relógio nas minhas costas: as pedras descrevem círculos imaginários sobre os nossos pés

pela primeira vez ouvimos o relógio bater as horas: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete

um silvo agudo rasga o falso silêncio

oito, nove

ninguém tem tempo, ninguém sabe correr, ninguém sabe que devia de correr, ninguém corre

dez

o maior estrondo de sempre: sinto a terra debaixo dos meus pés tremer e a abrir-se em bocas esfomeadas

a arquitectura de cimento do homem começa a cair: voos vertiginosos até ao solo: cinzento, fumo, cinzas, pó

onze

fecho os olhos, num gesto involuntário
deixo-me ir

doze
(cont....)


(esta história, café é o primeiro conto (curto) que escrevo, está dividido em sete partes, que tenho vindo a publicar aqui no blogue, provavelemente não escolhi o melhor alinhamento para ele e quem visita o blogue pensa tratar-se de poemas soltos, contudo depois de publicado na integra recomendo a sua leitura seguida, obrigada por lerem)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

voo suicida para todos os instantes perfeitos e dois suspiros


Fotografia de Jorge Pimenta

[...] estou cansado de ser apenas um homem.
António Skarmeta, O carteiro de Pablo Neruda



I
abro-te estas mãos que não acabam no tempo.
serás tu quem me há de sepultar
assim que mirrem os crisântemos
e o homem esqueça toda a linguagem.
não sei quando, na verdade,
não sou deus
e a catequese está já à distância da memória
por isso espero pelo calendário que marca os dias até morrer
e uma cigana que adivinhe quantos soubemos viver
nos silêncios que esquecem todas as palavras
todas as bocas
e quase todos os beijos.
será que permanecerão em mim,
pelo lado de fora,
todos os ruídos lentos que me abandonaram,
essa máquina que separa os vivos dos vivos
e nos aproxima dos mortos?
jorge pimenta


Fotografia de Jorge Pimenta


[…]e ninguém podia imaginar o mundo de palavras que levava comigo.
Correr é estar absolutamente sozinho.
[…] na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio.
José Luís Peixoto, Cemitério de pianos


II
parece que muros se erguem violando o céu sagrado
deixo que o grito se suma mudo
e a terra cubra quem tomba pelas valetas
se é no horizonte que se desenha o futuro,
ainda que a lápis, ainda que alguém o apague
eterno é tudo aquilo que nunca fui

no vasto rol de deuses que me fitam do alto,
com o dedo acusador
sei que há silêncio e gemidos ocultos na carne cansada
e olhos fechados sobre todos eles

eu sei que vou morrer
eu sei que vou, um dia, morrer
eu sei que as asas que me deram não me deixam voar
e eu sei que sei voar
e eu sei que vou voar, no dia que eu sei que vou morrer.
Laura Alberto

Crimes amorosos

não me quero cobrir, para que o frio que me cerca as costas permaneça
não me quero despir, será sempre o teu toque a percorrer-me

ainda sinto as costas serem invadidas pelo frio da parede:
a pele espalmada contra o branco dos azulejos, o gelo que queima a carne
a tua pele percorre cada pedaço da minha pele: a tua pele
cada um dos teus dedos aponta a estrada onde nos perdemos

o tempo pára

as tuas mãos percorrem o interior das minhas coxas como um fogo que cresce infinitamente
a minha boca na tua boca, a minha língua, a tua língua: uma só
enrolo as pernas e subo até ao teu tronco
o suor escorre pelos nossos corpos: calor
todo o meu interior é teu

escorregamos, líquidos pelo chão
e ficamos, assim: a respirar, a adormecer

e não queremos acordar


Fotografia de Man Ray

Manifesto CXXXIV

memória do presente virado passado tirado futuro

carrego o tempo viscoso que me ensinaram a contar
os minutos, as horas, os dias, os anos, as décadas
guardados em sulcos sob a pele
nas minhas costas estende-se o pó pela estrada
diante dos meus olhos a estrada de pó
[onde se bifurcou este trilho sem fim?]

a memória é veneno que consumo com lentidão
arde-me o sangue: sinto-o queimar as veias
sinto as veias que queimam a carne
e a pele estalar com violência

esta memória:
é mortalha que cobre o corpo
é pesadelo nas noites mal dormidas
é sono nos dias repetidos e repetidos
é um pedaço de carne:
que não consigo arrancar
que não consigo engolir
que não consigo cuspir

Man Ray, Profile and Hands, 1932

Salvador Dali e Gala

[cheguei cedo, cheguei cedo de mais]

sento-me numa das frias cadeiras de metal que aqueço com o corpo

à minha volta, um cortejo de pessoas: que esperam, que partem, que chegam, que não chegam, que tarde chegam, que desesperam

nenhum daqueles olhares é me conhecido, nenhum daqueles olhares me devolve um porto de abrigo

deixo-me embalar pelos corpos que dobram a esquina tentando equilibrar malas nas mãos e na dobra do cotovelo

adormeço ao som de peles queimadas, de peles brancas, de peles cansadas, de peles ansiosas, de crianças que correm e choram e riem, como é esperado de quem é criança

quando finalmente é o teu corpo que se destaca na multidão, reconheço a tua face, a tua boca, o teu olhar perdido e distante

[quanto tempo se passou?]

não espero resposta, ela surge nas rugas que agora aparecem quando sorris, quando franzes as sobrancelhas, desconfiado
[ainda a tens?]

levo a tua mão ao meu ombro, não preciso de responder porque acabaste de a sentir

[anda, vamos]
finalmente posso pousar a cabeça no teu colo

[tu sabes que eu gosto de vir aqui de vez em quando]
[sei, porque aqui nós conhecemo-nos ]

(cont....)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011



uma moeda reluziu diante dos meus olhos, ora, aqui está uma grande mentira, uma mentira poética: é impossível que uma suja moeda de cobre reflicta a luz do sol

[é o meu dia de sorte]

guardei-a no bolso, mais tarde colocá-la-ia numa qualquer gaveta em qualquer lado, daquelas que só se abrem para guardar aquilo que outros chamariam de inutilidades inúteis

riscava a areia que se acumula nos espaços dos paralelos juntamente com beatas, papeis e, perdoem-me a sinceridade, um ou outro escarro

alguém me pergunta as horas, sem olhar e sem errar, disparo
[dez horas]

estava de novo na minha mesa de café: ontem fui a última pessoa que aqui se sentou, hoje sou a primeira pessoa que aqui se senta

aqui, e isto porque as leis não passam da porta, pode-se fumar, pode-se fumar, pode-se voar com o fumo que sai de um cigarro em espirais incontroláveis

ninguém: o café está vazio: o Sr. Sebastião e eu
na cadeira vazia de fronte a mim, onde muitas vezes pouso um ou outro pé, uma caixa rectangular embrulhada em papel mata-borrão abraçado por um atilho de fio norte

[ei, está aqui um embrulho]

perante um encolher de ombros pouco interessado, desfaço o atilho, desembrulho o papel, abro a caixa:

uma pequena pedra cinzenta e um cigarro

[Sr. Sebastião, traga um cinzeiro]
(contínua...)

Crimes amorosos

XII
hoje
cada um de nós dorme:
nos lençóis, na cama, no quarto a que pertence
hoje
cada um de nós:
apaga a sua luz e cobre-se com o seu cobertor

esta pele, não é nossa
estes lábios, não são nossos
a minha boca na tua boca, a tua boca na minha boca: estas bocas não são as nossas
estas pernas, não são nossas
este peito que arde, não é nosso

nosso é:
este suspiro que resta
este grito abafado na carne
esta lágrima que se disfarça
esta multidão onde nos escondemos

quinta-feira, 6 de outubro de 2011


[Gala e Salvador Dali]

voltei a página, a folha que se seguia estava em branco
bem como todas as outras, cosidas com uma linha preta

conseguia ouvir o silêncio que ficava entre o espaço das vozes que se sentavam a meu lado

conseguia ver a sombra das pernas cruzadas estender-se no chão, o mesmo que eu martelava com a ponta da sapatilha

uma mão de dedos esguios pousou-me no ombro

no mesmo instante senti o calor que atravessava a camisola que vestia e senti o frio que me gelou os ossos

a outra mão, também de dedos esguios e tortos segurava um isqueiro que pousou na mesa onde se acumulavam papeis, duas chávenas, um copo com água da torneira e pó

não controlava os meus gestos e a caneta que segurava bateu contra o chão e escorreu pelo pavimento sujo

quando ergui a cabeça e olhei, olhei apenas para ausência: estava sozinha, naquela mesa, naquele café:

eu e um isqueiro
(... continua)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Crimes amorosos

XI

deixa que escorra pelos teus dedos,
que a última gota de sangue caia nos ladrilhos bancos
e invada o ar com seu barulho ensurdecedor
sem pensar, sem medo
esconde as mãos dentro dos bolsos

amanhã descobrimos os nossos nomes

David Bowie - Strangers When We Meet


[Gala e Salvador Dali]

eu deixei de fumar de tu nunca fumaste

mas sei, que se te cravar um cigarro
guardas um no bolso para mim
que se te pedir lume, encontras no fundo do bolso do teu casaco um isqueiro sem gás

[lamento, não funciona]

continuas a insistir, a riscar, sem efeito, a pedra do isqueiro

[obrigada à mesma, alguém ao dobrar da esquina terá lume]

mas tinha a noite caído, sobre os candeeiros esguios de gélido metal

uma luz negra cobria agora as minúsculas pessoas, que corriam: fugiam entre os túneis do metro, entre autocarros repletos de sonhos desfeitos

a mesma luz negra, descia sobre a nossa pele, dobrava o teu rosto pálido e caia a meus pés

[será um risco percorrer esta calçada sozinha, agora…]

em bicos de pés bebia a tua voz

[agora que todos se vão e o café fechou]

à volta, apenas o silêncio e uma praça vazia

e uma vontade incontrolável de fumar um cigarro
um cigarro que nem sequer trazia

(... continua)