«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Tendinites IX

avança a estrada sobre mim
sinto a sua língua quente penetrar
sem pudor, sem desculpas, sem pensar
o calor entra pelos poros, invade a alma e aí fica:
um parasita que se alimenta até a carne ser apenas uma memória

apetece-me porém agradecer
o pó que me preenche
e o cheiro das pessoas que me cercam
estou vivo

desenho o corpo, sobre o pó pousado
o meu corpo tem a forma das nuvens
e adivinha o suor dos deuses
[estou viva, sim e adivinho o teu sorriso]

João Miguel Ferreira e Laura Alberto

crimes amorosos

VI
fecho os olhos e finjo dormir embalada pelo ar que libertas
acendo um cigarro, que não fumo, só pelo prazer de ver o fumo azul subir até ao tecto e perder-se em rolos de loucura
abro as mãos e com os dedos percorro a estrada estendida sobre os lençóis

não consigo dormir, o sangue ferve sobre a pele em ânsia
na penumbra, finjo fingir, sem te acordar

terça-feira, 19 de julho de 2011

Polaroid 43

nocturno

receio que a manhã acorde e a escuridão seja o manto que cobre a terra
uma luz negra desenhando o contorno das arvores, das fragas, dos desfiladeiros
e no ar pó, pó e mais pó

toda a vida apagada por um denso nevoeiro,
espesso, como o sangue coagulado nos moribundos

todo o calor bebido pelas entranhas da terra
sofregamente até se tornar uma memória, distante e esquecida

temo que a manhã invada os olhos errantes
com a sua escuridão, fria e negra escuridão
um dedo pousado sobre os lábios. silêncio

crimes amorosos

V
anoitece:
a luz abandona as formas perfeitas entregues ao silêncio
a penumbra desenha estátuas imóveis de mármore branco, de olhos arregalados como misteriosos seres deformados pela ausência de luz

anoitece:
o vento pára, a terra pára, o tempo pára
arrastam-se os corpos vivos, todos adormecem, fingem dormir enquanto agasalham a carne com promessas impossíveis

anoitece:
é hora, é esta a hora
lá fora, a noite, o silêncio, o negro
chamam-nos

segunda-feira, 18 de julho de 2011

crimes amorosos

IV
deitava-me a teu lado
no tempo em que as tardes começavam quando a luz rasgava o horizonte e terminavam nas longas horas da madrugada
ali, imóvel a teu lado:
deixávamos que o vento nos perturbasse a pele em promessas mudas
e sob as nossas cabeças o céu rodava cansativamente azul

bebíamos sofregamente os segundos marcados na palma das mãos
mordíamos selvaticamente o canto dos pássaros negros

deitavas-te a meu lado
quando a areia corria no leito nos rios
e a foz era apenas uma miragem delirante
eu, imóvel a teu lado
éramos estátuas de mármore onde corria o sangue
com que traçávamos o dia seguinte à noite eterna

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Manifesto CXXXIII

de ti:
quis saber onde mora o vento
que molda a pele que me cobre,
corri entre escarpas afiadas
e no mar lavei o sangue
mas o vento tinha parado e tu sorrias distante


de ti:
ouvi contar, como doce melodia,
que cavalgavas no dorso das ondas
e bebes dos lábios das algas,
despi a túnica que vestia
e procurei-te na linha do horizonte

de ti:
descobri que os deuses não existem,
pisando o pó, a terra, a areia
com que enchemos as nossas casas

Manifesto CXXXII

queda em espiral sobre manto branco

acordei para descobrir que o tempo tinha parado
ali sobre a mesa, entre o pó branco que se acumula, repousa: fechado, calmo, perante lábios semiabertos
encontro o sopro quente, fugaz interior, como a escaldante areia que se teima agarrar, para de pois se perder
e sei que ainda assim, entre o estender da noite sobre o quarto e o desenho da luz nos corpos desnudos, ainda assim, despertarei no armário das recordações, no armário escondido e cerrado da nossa memória

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Crimes amorosos

III
este sol marca a pele, como o giz sobre uma ardósia
procuro a água onde banhar o corpo e descubro que os rios carregam as palavras mudas sussurradas ao ouvido
o calor usurpa a pele, a carne e dentro, o sangue ferve como água pronta a desinfectar

e o frio que não chega, não chega a tempo para que me vista com o teu manto negro
e o frio que não chega a tempo de acabar com este ardor que sai do peito

Einstuerzende Neubauten - The Garden

quarta-feira, 13 de julho de 2011

crimes amorosos

II
na carne branca, pintadas de azul, veias exaustas carregam o sangue e a alma é lavada
na pele fria, dedadas de Minotauro cravam-se sem piedade
no ventre, habita a ruína: negra, gelada, pedras e pedras, tombadas, derrubadas

moonspell- Wolfshade (A Werewolf Masquerade)

crimes amorosos

I
um dia, quando a manhã acariciar os nossos corpos banhados na escuridão fria
sairei a correr, pelas pedras cinzentas, para mergulhar nos teus braços
e descobrir que todos os rios terminam nos pés ensanguentados dos amantes

Moonspell "Scorpion Flower"

terça-feira, 12 de julho de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXVII
atravessada sobre os lençóis brancos, deixo a minha cabeça pender. da janela do quarto, observo a luz amarela do candeeiro filtrar-se entre o nevoeiro que se espalha na neblina. ténues pedaços de luz amarela dissolvem-se na escuridão da noite, pequenos pedaços de algodão desfeito.
os teus dedos desenham mapas na minha pele, a tua boca bebe o rio sem foz, na carne cravam-se os dentes.
uma gota de suor cai, sobre o chão de madeira e a lua acaricia os corpos com a sua luz fria de gelo.
o tempo parou, para que se pudesse dormir, assim, pausa.

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXVI
um instante, um breve segundo: sentir que o coração parou e o sangue é uma poça adormecida, onde crianças saltam de pés descalços.
se abrir um corte na pele, se cortar em duas linhas simétricas o peito, jorrará sangue em golfadas tímidas, lágrimas virão limpar a face e o sal adivinha esculturas disformes na linha do rosto
sentir este estremecimento, sentir-me assim, sentir-te assim, dentro de mim

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Polaroid 42

as tardes à beira-mar

a tarde pousou a sua cortina nos nossos olhos. abafado
nos nossos olhos fechados, sob o sol impiedoso
descubro o teu peito, move-se lentamente para deixar o ar ser
apenas uma réstia de vento que náufraga na tua pele

fechamos os olhos perante a tarde que se estende. abafado
pela areia suja, pelos gigantes dos rochedos que escondem o mar salobro
os primeiros passos de uma criança, os seus pés delicados no cimento rude:
pára, imóvel, silenciosa e aponta

a tarde cai aos nossos pés e um dedo de criança aponta o céu azul
o primeiro odor do sargaço a secar provoca-me náuseas
e um dedo de criança aponta o céu azul
digo. não, penso: descobriu a linha que nos separa


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Polaroid 41

degrau

as escadas são os pés que as pisam: todas as horas, todos os dias, todas as noites
e as folhas caem dos calendários suspensos nas paredes
os pés pisam os degraus, um a um, dois a dois, um saltinho e chega o fim, o fim no início
e o pó vai-se acumulando nos cantos de onde o gigante sorri

em silêncio, cruzamos as pedras de granito
enquanto os ombros se tocam e os olhos se fecham
enquanto os pés, cansados na sua passada, arrastam os corpos mirrados

as escadas são os pés que as pisam: todas as horas, todos os dias, todas as noites
e o lixo acumula-se, mas:
não são papeis
não são beatas de cigarros
não são pratas
não são pedras, areia e cinza

e o lixo vai-se acumulando


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

quinta-feira, 7 de julho de 2011

bala número onze

enrola-se na língua, aperta a carne com o seu fio fino
e aperta, aperta
já não é uma língua só, são duas divididas pelo fio invisível
que aperta e aperta
já não são os braços que rodeiam o corpo
e a pele cai em escamas pesadas diante dos pés
a voz some-se entre lábios que se movem violentos
se provares o sangue receio que encontras
a lápide que enfeitará a tua tumba

e a mentira sublima de encontro aos deuses

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Manifesto CXXXI

Creonte chega de noite

franzes as sobrancelhas, um sulco entre a carne coberta de pele envelhecida suavemente
o cabelo retrai-se sobre a testa e as tuas orelhas continuam paralelas
intocáveis, entre a linha do rosto que separa a face do pescoço robusto

de olhos fechados consigo ver o teu rosto
de mãos paradas sinto o teu corpo nu

deixas os lábios entreabertos e deles se escapa o fumo do cigarro
que seguras entre dois dedos da mão esquerda
a mesma mão com que afagas os dias marcados no calendário

sei o caminho, reconheço cada curva entre a escuridão da noite
hoje, já nem a tua fotografia consigo beijar
e no chão do quarto acumulam-se os nossos cadáveres