«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Manifesto CXXX

sob o clarão dos dias

debaixo da copa dos carvalhos fugirão pardais de asas partidas
rasgando o azul do céu e deixando-o a sangrar sobre as nossas cabeças

desconfio, alguém se esqueceu de nós
e cá ficamos, entregues, parados, a correr
fugindo dos dias, perseguidos pelo passado, à procura do inútil amanhã

no ventre da terra, cortada pela lâmina do coveiro
as borboletas vão cair, leves, esqueletos sem ossatura

[alguém roubou as nossas asas]

o vidro filtra a mentira
e nem a verdade invade o olhar
pois a cegueira é a sombra que caminha nas costas dos homens

bala número dez

a tua roupa dobrada no cabide: observo-a do outro lado do quarto
daquele mesmo ponto onde a parede se funde com as tábuas do soalho

a tua roupa, religiosamente dobrada, guardada como relíquia de boticário
acumulou ao longo dos dias, dos dias longos, dos dias curtos, das noites frias, das noites solitárias:
todos os risos, todos os choros
todos os silêncios, todos os gritos
todos os abraços, todo o frio

e agora está lá, queda e silenciosa
a roupa que cobriu o teu corpo, agasalhou a tua pele, abafou o teu sorriso distante

e agora:
perdeu a sua cor, desbotada pelos anos
e agora, a tua roupa já não tem a forma do teu corpo

e o silêncio habita no armário fechado


Uma Taxidermia de Papel, 1989 - Jorge Molder

terça-feira, 28 de junho de 2011

Concurso

Amigos: resolvi concorrer a um concurso literário, via internet. Para conseguir passar à final preciso de ficar entre os vinte trabalhos mais votados. Como conseguir? Com o voto de todos, na página do concurso. Só precisam de estar registados no facebook, depois é só votar no meu trabalho: Cemitérios.
Podem votar todos os dias, apenas num trabalho. Votando todos os dias, o meu trabalho consegue subir no ranking.
A todos o meu sincero OBRIGADA!
http://www.conteconnosco.com/trabalho-detalhe.php?id=848

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Polaroid 40

naufrágio

um dia, mando as estrelas procurar o teu corpo
e sigo o rasto de pó pintado ao leme do navio de pedra
nesse dia, ouvirei a tua voz gritar do fundo do oceano como um farol guia
e a escuridão será o lastro da minha viagem
nesse dia então, descobrirei que as vagas guardam as tuas mãos
e o frio é memória fresca dos teus lábios

Fotografia de Gerard Castello Lopes

terça-feira, 21 de junho de 2011

até amanhã

amanhã acordo nos teus braços com a frescura da tua pele a tocar a minha
amanhã observo o meu reflexo nos teus olhos como nas águas de um lago adormecido
amanhã o vento entrará e arrastará as cortinas com as quais escondemos os segredos
amanhã, de manhã bem cedo, estarei deitada a teu lado e as horas podem escorrer
e as horas acenam-nos lânguidas enquanto imóveis deixamos que os lençóis nos tapem

amanhã, amanhã sei que vou acordar nos teus braços e toda a solidão, todo o silêncio morrem nas esteiras do teu abraço, ainda que distante, amanhã vou acordar nos teus braços

Manifesto CXXIX

crónica de uma idade anunciada

I
quando acordo, mesmo de olhos fechados
há verdades que dormitam à espreita, não é preciso despertá-las
pois flutuam entre os dias e as noites

abro os olhos: o céu ainda é azul, as flores nascem da terra
e os tordos, os pássaros, as andorinhas, os pardais ainda sabem voar

não me atraso, outras vezes atraso-me
as ruas e as casas que as ladeiam permanecem
desenham duas linhas, duas margens nas quais navego

os mesmos rostos fechados
as mesmas mão paradas
os mesmos pés assentes em terra seca
o mesmo velho chapéu abrigando do sol, da chuva
o mesmo minuto gelado, imóvel, arrumado na alta estante

II
o tempo, esse maldito, atraiçoa a memória
esfuma os contornos do teu rosto
dilui as curvas do teu peito, das tuas pernas
e as tuas mãos sublimam em pensamentos distantes

III
a tua fotografia, assim pousada
a surpresa de a encontrar, de a reencontrar
adivinha a certeza de te esquecer


David Lynch Directing Charlotte Stewart Through a Window on the Set of Eraserhead

sexta-feira, 17 de junho de 2011

memória de um rio seco

todo este pó, cola-se à pele, entranha-se na carne, corre louco dentro do sangue
todo este pó enche os pulmões e lá permanece, sossegado

[acaso saberão os deuses onde se esconde a fonte para buscar a água preciosa?]

uma impressão na garganta recorda-me que não é sede, não é fome:
é apenas pó, que fica colado ao corpo
pó, com contornos de uma sombra indefinida caminhando ao nosso lado

terça-feira, 14 de junho de 2011

Manifesto CXVIII

monólogo do astrolábio partido

de uma lágrima fiz o oceano nascido entre os nossos pés
com um grão de areia moldei continentes suspensos no ar
parti um copo para te ver do outro lado, mesmo que longe, mesmo de costas
um quadrado de pele serviu-me de nau, uma gota de sangue deu forma às suas velas

tive frio, tive calor, tive frio, tive calor
tive escorbuto, tive sede, tive fome
tive medo, tive medo, tive medo

não sabia das estrelas porque se apagavam à minha passagem
não conheci os peixes em cardumes, escondidos que estavam no abismo
não ouvi o cantar do vento com os ouvidos surdos

à deriva fui, fui, fui, fui e vou


Marcantonio, Melancolia 20, Técnica Mista 89×154 cm, Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/

domingo, 12 de junho de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXXV
o fumo do cigarro sobe em espiral, entre as línguas de luz que fintam os estores fechados. sigo-lhe o percurso contorcido entre pequenas partículas de pó. é provável que o sol queime as searas esta tarde e se abrigue no beiral da porta, mas aqui o frio permanece, imóvel, gelado, irrepetível.
de olhos abertos, de olhos fechados a escuridão rodeia o meu corpo e as papoilas ardem mais quentes do que a luz que as finta.
inspiro o fumo, o pó, o frio, o negro dos olhos e expiro em golfadas geladas.
algures o gancho enterra-se no peito e conto os dias, os meses, os anos que aqui me trouxeram.
a culpa existe: é a pele que cobre a carne, as rugas que sulcam a cara, o sangue que desliza pelos dedos, os olhos que fugiram das órbitas.
adivinho a tarde, lá fora: a tarde parou nos pés das crianças sem forças para a pontapear, a tarde parou nos olhares pasmos dos pais, a tarde parou no dia em que o meu cigarro se apagou.

sábado, 11 de junho de 2011

bala número nove

ninguém disse, entre os carreiros caminhamos sozinhos, quando ao nosso lado se estende a sombra
ninguém disse, com a chuva cai a voz rouca daqueles que se escondem nas nossas costas
ninguém disse, num sorriso mascara-se a infelicidade do mundo pintada de vermelho
ninguém disse, um passo à frente é o abismo

e as pás fazem-me calos nas mãos quando decido cavar o tumulo

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Manifesto CXVII

Entretanto

os minutos escorrem até aos oceanos destes dias cinzentos
pelas mãos escapam-se os teus cabelos ondulados
em segredo finjo beber a água com que lavas as mãos, pisar a terra seca onde foges em liberdade

[passo as noites a imaginar que me deito no teu corpo, que me cubro com a tua pele, que são as minhas pernas que tocam as tuas pernas, sempre, num qualquer lugar]

é dia, outra vez, entra ruidoso pelas janelas e afasta as cortinas
a luz que me toca as pálpebras é escuridão, é a noite que continua, eterna a meu lado
são metros e metros, quilómetros e mais quilómetros, entre nós, sobre nós
todo o silêncio, todas as palavras, escritas, ditas, gritadas, caladas

entretanto a areia cai sobre o vidro fosco:
somos um segundo à deriva sobre o calcário da rua, afogados na chuva fria e ficamos

terça-feira, 7 de junho de 2011

Manifesto CXXVI

a música que embala e chega na noite

sabes agora que vou ouvir
as palavras que encerras no peito
nada receies, elas chegam mudas pelas janelas entreabertas,
deixei-as assim para que viesses, entre as agulhas dos pinheiros pela noite sombria

[deixa-me tocar esse teu corpo que outrora me pertenceu,
beber dos teus lábios os beijos que me arrasam]

parece que regresso dos mortos, com o pó na alma
e o medo caminha comigo, ao meu lado
observo o espelho, sinto-me estremecer por dentro

[já não é o suor que me corre na pele nua
e descubro que os lençóis são frios de mais]

afio os ouvidos, deixo que o silêncio me retalhe, lentamente

Tendinites VIII

as árvores suspiram nos ramos agitados
a sua prisão eterna.
fosse árvore e também agitaria os ramos.

mas este vento cola-se aos ossos
afaga a carne e gela o sangue
ouso morder-lhe a língua num aviso de insanidade declarada

quando vestir de inverno o esqueleto
como hei-de gritar o podre e a finitude?

ao dobrar a esquina, sinto-lhes o bafo acre
adivinho a linha da gengiva a sangrar o seu veneno
são inúteis estes vermes onde assento os pés
e lá fora agitam-se as bandeiras desbotadas

sou um galho seco
pleno de humanidade boiando sobre o lodo

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

Bala número oito

afirmam apreciar a minha letra, a que desenho com a mão direita. observo-a sem notar o que nela vive de tão especial. esboço um sorriso, é da caneta, quanto à letra, perdi no tempo onde começou a enrolar-se na mão, no pulso, em mim, desde sempre foi assim.
tens uma letra bonita, já não ouvi.
a branca folha repousa sobre a mesa, um ligeiro tremer de mão, há que ser firme e agarrar a caneta. a folha continua virgem, a mão imóvel.
ouço o aparo a rasgar o papel, a tinta espalha-se entre as fibras do papel. silenciosa a folha deixa que a tinta a penetre. diante dos meus olhos, os primeiros riscos, a primeira letra, depois outra, mais outra, um hífen seguido de duas letras, uma palavras, outra, outra e mais outra.
os olhos não conseguem agora beber toda a folha, todas as palavras dispostas, arrumadas sigilosamente.
é minha esta letra, tem o sangue que me corre nas veias, o suor que se acumula nos dedos.
e esborrata-se com o sal das ondas

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Bala número oito

Batalhão de cavalaria

vesti hoje a tua roupa que adivinhava não me servir
passei as mãos pelos ombros, a costura assentava no antebraço
provavelmente pensarás, tempo houve em que a carne cobria o meu esqueleto e as calças não transpunham a linha do ventre

se tentar, sinto o pó que se liberta das fibras e adivinho o odor bafiento que se emana aquando das primeiras gotas de água

fecho os olhos, abro os olhos, um trilho de veredas constrói-se desde os meus pés até à linha do horizonte onde começa o céu, o caminho onde correste, onde soubeste o que é ter medo, onde descobriste a coragem, onde te deixaste ficar

a roupa teimosa, sobra ao longo do tronco, dos braços, das pernas
esta é a tua roupa, comida por traças, esquecida numa velha mala arrumada no sótão, as tuas memórias, os teus dias, os teus anos, enterrados no esquecimento, noutros anos que se seguiram

e os elefantes brancos abatem-se na savana distante

sábado, 4 de junho de 2011

Manifesto CXXV

arquitectura de uma sombra

(para o José Luís Peixoto)

fundi-me na cal da parede, alva, intocável.
ali, colei as costas à parede e deixei que o meu corpo fosse sugado pela cal, a pele, a carne, os ossos, uma massa que se misturou na pedra.
os pés entraram dentro da terra, o pó são os meus pés, os meus pés são de pó.

em silêncio, adivinhei a sombra crescendo, desde o rés da parede, um ténue traço contornado de penumbra, depois um rectângulo, depois um quadrado de sombra perfeito e depois continuou a crescer, a fugir entre a terra e a calçada escondida, um gigante pedaço de sombra a diluir-se, grande, grande.

alguém limpa o quadrado e a sombra permanece
alguém perde um sapato e não há contos que possam ser escritos
alguém cai e o sangue escorre entre os espaços do paralelo, as ervas secas, ressequidas, o pó pesado
alguém chora lágrimas que desaparecem
alguém fica prisioneiro naquele quadrado

cai a noite, a sombra invade toda a rua, todas as casas, todos os quartos, todos os corpos, todos os espaços vazios, todos os espaços cheios

a noite deita-se em lençóis extremosamente asseados, ao lado da solidão
a noite é o quadrado de sombra que dorme ao nosso lado

Fotografia de António Nunes

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Bala número sete

as mãos cansadas seguram o pano laranja, sinto as suas fibras prenderem-se na pele seca.
limpo o pó, o pó branco deitado sobre os moveis, as estantes, os livros, as recordações que acabaram por ir ficando, como prova de um passado, cada vez mais arredado, arrumado nas folhas que se viraram, ao sabor do vento, amareladas.

se abrir a janela, outro pó branco acabará por entrar, invadir as falhas do ar saturado que paira e cobrir os móveis, as estantes, os livros, e eu voltarei a segurar o mesmo pano, imóvel entre um segundo e outro, entre uma eternidade e um instante.

e o pó voltará para cobrir as molduras vazias da tua face


Sigur Ros - Viorar Vel Til Loftarasa
Amigos e seguidores do blogue: por motivos que desconheço, não consigo comentar nos vossos blogues, após várias tentativas fracassadas, acabei por desitir.
Espero que isto não passe de uma doideira informática!
Beijos