«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Polaroid 17

Blues de um qualquer copo, vazio

derrete, lentamente, o gelo
boiando sobre a linha do whisky
fuma-se, finge-se
que se respira, que se espera, que se parte

mais uma pedra, de gelo
mais um gole e outro, mais outro
esquece-se o cigarro, no cinzeiro, nos dedos
que se cruzaram, que se partiram, que se perderam

um copo vazio, numa mesa suja de cinza
um banco, abandonado,
sobre mosaicos desgastados
partidos

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

Cor: Rosa

sorrir sobre o céu
afagar as cicatrizes escondidas pela roupa, limpa
sentir a pele, beber do suor
apertar o sangue que circula nas veias
rasgar as nódoas negras, quebrar os ossos

e sorrir sobre o céu
deixar:
de ouvir o silêncio e morder o medo
desenhado nos lábios

Manifesto CIV

Cicatriz

sonhar:
enquanto os dias escorrem
longos pelas folhas,

acordar:
deixar os lençóis frios,
esquecer as marcas que ficaram no colchão

dormir:
esperar que as noites sublimem
em histórias amaldiçoadas

pintar:
o tempo em ondas,
dissolvidas em espuma, marcadas no sol

ouvir:
as pedras que gemem
na ausência, de nós

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Polaroid 23

Corpo na berma da estrada

toco-lhe com a biqueira da bota suja de terra,
não se move
sinto o musculo esponjoso que se enterra até ao osso

estendido, abandonado
o tempo trouxe o esquecimento
e as chuvas lavaram os vermes

toco-lhe, com o dedo sujo de ar,
sinto as camadas de pele
desintegrarem-se entre a unha e a carne

o sangue coagulado
o esqueleto quebrado, escondido
por carne podre, carne seca

viro-lhe o tronco,
num emaranhado de cabelos imundos,
descubro o meu rosto
nos lábios que beijam o alcatrão

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXVII
fazer das tripas coração: esperar que ele bata, que circule o sangue, que se respire o ar, que se beba a água.
fazer das tripas coração: sair, ir e chegar para voltar a sair, ir e chegar, até um dia.
fazer das tripas coração: rasgar a face, esticar os lábios, sorrir, ouvir o riso que sai de dentro e continuar a sorrir.
fazer das tripas coração: beber as lágrimas, trincar o sal, morder o medo, esconder a faca.
fazer das tripas coração: partir os ossos, queimar a pele, cortar o musculo, deixar o sangue correr, pelas pernas, pela lápide.
fazer das tripas coração: coragem e fazer das tripas coração.

Cor: Amarelo, pálido


Fotografia de Laura Alberto

invadiu as paredes, tímido
tomou conta de todas as pedras
até que a cal abandonou todos os quartos, todas as salas, todas as divisões
até que nada mais sobrasse,

havia então o silêncio, o frio
e a noite entrava, pela porta, pelas janelas fechadas
a noite saia dos olhos, gelava o ar, o sonho
nada mais restava

[e não vale a pena acordar-te]

[e não há sitio onde escrever]

[e não há palavras que possa gritar]

[e não vale a pena acordar-te]

Polaroid 22

Carrasco

arrasta as botas pelas pedras da calçada
o tempo esquece-se entre as linhas de terra

dedos torcidos, frios
arranhados pelas meias de lã

sacode os braços, num movimento descoordenado
agita a lâmina de aço, rasga o ar humido

são as ruas que crescem
sobre as solas, até a linha do mar

range os dentes, range os dentes
um fio de sangue escorre pelo canto da boca

[psst, psst]

é a noite que cai pelos ombros
entra pelo olhos raiados de raiva

[ei, psst, psst
estou aqui]


Marcantonio, Melancolia 43, Técnica Mista, 85×150 cm, Rio de Janeiro, 2007

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Manifesto CIII

Rotina

ajeitar a almofada, pousar a cabeça
esquecer o dia, a hora, agarrar os lençóis
deixar o sonho, deixar o sono
ocupar a marca no colchão, desde sempre
e dormir
no beijo mudo da noite

acordar, num repente: o frio do quarto, a água
que corre, que cai, sobre a pele, ao longo das costas
sair ou ficar?
abrir as feridas, sorrir aos estranhos, limpar as mãos
cobrir o sonho, cobrir os paralelos
com passos céleres, desajeitados

voltar,
encontrar: paredes nuas, ar vazio,
o silêncio
olhar o reflexo em espelhos cansados
ajeitar a almofada, pousar a cabeça
e dormir


Joy Division - Atmosphere

Cor: Castanho

para quê abrir os olhos?
afago os grãos de areia húmida
com a ponta dos dedos dos pés

[onde estão as horas
que escorreram entre os nossos braços?
acaso invadiram a pele e gelaram o peito?]

porque me hei-de erguer?
sinto as vagas do mar em todo o corpo,
chegadas para rasgar as entranhas

[onde estão os teus lábios
mesmo que frios, gelados
para me sussurrarem palavras baças?]

onde estou eu?
algures numa poça, algures à deriva
onde fico eu?

Pedradas XLIX

Contar

quando aprendi a contar,
contei:
todos os azulejos da cozinha
todas as linhas que via
todos ao traços brancos no negro do alcatrão
todas as escadas que subi
todas as janelas que esqueci abertas
todos os pássaros que me fugiram
todas as pedras que agarrei
todas as portas em que entrei

um dia deram-me uma máquina
e desisti de contar

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Manifesto CII

Marítimo

sinto ainda o vento, o seu odor
quando entrelaçou os nossos cabelos
e agora,
ainda tens os pés dentro de água?

ouço os braços que se agitam
mas já não é o teu calor que me envolve
é frio que fica
a marca da ausência e eu aqui

[quisera ser pedra, rocha
dura, cinzenta, fria, húmida]

ficará:
a marca das ondas,
a espuma que seca em silêncio,
a areia dispersa nos dias longos,

virá a chuva,
lavar o sal,
arrastar as algas,
assassinar a memória que me resta

Fotografia de Gérard Castello Lopes

Manifesto CI

Nocturno

[então, se virar a página
estarás lá?]

os teus braços não se movem
as tuas pernas estão enterradas,
os teus olhos esvaziaram-se, entre os sopros de tempo
estão frias as tuas mãos, sobre o peito

[então, se virar a página
estarás lá?]

deixei a roupa pendurada,
os sapatos cambados, tombados nas escadas
descalça, andei, andei e andei, até que:
o sangue gelou,
as veias gelaram,
a pele estalou,
perdeu-se o sal,
esqueceram-se as lágrimas

então
se virar a página
não estarás lá

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Pedradas XLVIII

O bicho

engulo em seco
ele continua lá, teimoso
insisto, mordo a língua
e o sangue escorre pela traqueia
as cócegas continuam

bebo água, uma mistura
de sangue e água salobra
escorre pelo canto da boca
pouso o copo baço na mesa da cozinha
ele abre as asas e afaga o meu interior

[tosse, tosse
raio de tosse que não me larga]

meto os dedos na boca,
faringe, esófago e laringe
nada
mas as cócegas continuam
o ar tem dificuldade em entrar, em sair, em permanecer

chegará a hora em que o verei,
finalmente:
numa qualquer lâmina de microscópio
cortarei o seu corpo anelar com o bisturi
sem espinha, sem esqueleto

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

fevereiros


jorge pimenta [espigueiros do soajo - p.n. peneda-gerês]

não deixes que este fevereiro
faça morada em ti.
para que queres o vento
se levanta a pele,
para que procuras o frio
se rebenta os músculos
ou a chuva
se lava os ossos?
[há tantos náufragos
sem madeira ou braços
com que gritar].

és apenas um banco de jardim,
onde o gelo trespassa a sola dos sapatos.
é frio, frio que te vem cortar os dedos
turvar o olhar, cerrar os lábios.
apertas a gola do casaco,
enquanto rolos de ar se libertam da boca
semiaberta.
ao teu lado, um velho tronco de árvore
adormecido,
gasto por histórias escritas
nas tempestades de inverno.
[ah, que inferno].

não,
não deixes que este fevereiro
renasça contigo,
se faça monstro dentro de ti,
te morda o pescoço
e te roube a as cidades transparentes
que avistas por detrás da retina.

sabes caminhar mas não há caminho
a lama cobriu o que o tempo esqueceu,
queres ir mas não sabes onde
não vislumbras a pedra com que te cobrir.
é:
os meses são como a roupa da cama:
assobiam rebanhos nocturnos
e no desejo de adormecer camélias
empurram o lençol para o rosto
lambem o sonho
acariciam o desejo
enquanto estendem a mão para a boca
brincam às escondidas na solidão da noite
[não o sabias?]
e não consigo respirar
e falta-me o ar
e procuro os utensílios, desinfectados
e esqueci o frasco de cristal
e bebi do veneno
e não sei do antídoto
e estrebucho em silêncio
e arranho o sangue com pele
e vomito as entranhas que não me pertencem
que não me pertenceram
e já não sou eu que choro.

e, ao meu lado,
há sempre alguém que morre primeiro.
Jorge Pimenta & Laura Alberto


clint mansell, requiem for a dream

Cor: Verde

choveu, choveu e choveu imenso
choveu e choveu
vagas de água, fria, gelada

até que os campos não conseguiram mais
e continuou a chover
a água transbordou pelas estradas, ruas e vielas
são rios, os rios são mares, os lagos são oceanos
e os oceanos continuam oceanos

um caminho de pedras, de terra arrastada, alagada
rebentaram os muros, explodiram os peitos
fiquei à espera, numa grande pedra

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXVI
uma casa e as suas paredes: pintadas, enfeitadas com desenhos a dourado, manchas de água que hão-de escorrer, no futuro, do telhado, das caleiras rompidas.
são dois, três, quatro, cinco, voltam a ser três, deixam de ser três, para serem dois, depois três, depois dois, uma.
o barulho encheu os corredores, os quartos, todas as divisões da casa, abriram-se todas as janelas, limpou-se o pó pousado de leve sobre os móveis, quadros de imagens, que nunca existiram a não ser na mente de quem os pintou, brilhavam nas paredes.
a chuva batia nos vidros da janela, a luz do largo iluminava os quartos escuros, luz amarela. de joelhos, apoiada na alcatifa: não quero crescer e tu vais ficar sempre comigo. a resposta falsificada e é de novo verão, de novo inverno, de novo a mesma promessa.
muito antes de ser só um, os cães morreram, deixaram as casotas vazias, que acabaram em ruínas, tal como o velho barraco. depois, o ruído foi sumindo pelas janelas, pelas portas e o velho relógio de corda parou.
quando ficou só uma, o silêncio invadiu a casa, pelos vidros tortos, pelas portas entreabertas, misturando-se com a escuridão dos dias. o pó ficou nos tapetes, o cotão amontoou-se nos cantos da sala, o cinzento tinha chegado.
quando a porta da rua se fechou de vez, ficamos sentadas na cozinha, nos bancos de sempre a observar aqueles azulejos brancos, alguns rachados: brincas comigo?

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXV
querer escrever e não conseguir: as palavras ficam prisioneiras no peito, rochas cinzentas que se amontoam. todos sorriem à minha volta. passam me as mãos pelas costas, batem-me no ombro, dizem-me olá, acenam-me um adeus. porque é que não se calam?
sim, estou aqui, sentada, com frio. à espera que as horas passem, mas elas deslizam longas pelo dia cinzento, pelos dias solitários.
sim, estou aqui, sentada ao vosso lado, ouço as vozes que quero distantes, que quero silenciosas, sim, porque estou aqui, estou sozinha.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Cor: Cinzento

se quiser pintar a tua face
já nem sei que tinta usar,
minhas mãos esqueceram o rosto
que trazias nas noites frias

não sei que voz vou ouvir
quando disparar uma pergunta,
o emaranhado de alcatrão negro
não leva o meu silêncio

é ar, ar, ar, terra, terra e terra,
são as arvores, as estradas,
a tua casa lá no fundo
o ruído, o fumo

são as grades, altas
és tu
sou eu
são as cicatrizes que trazemos

“Homenagem a Henri Cartier-Bresson” de Gerard Castello Lopes

Cor: Azul

um arame, um arame num esfregão
um esfregão de arame
uma barra, uma barra num sabão
uma barra de sabão

uma torneira, muda
água quente, surda
uma banheira, branca
uma toalha macia de gasta

esfrego, raspo e esfrego
com fúria, com dor
e toda a sujidade continua lá
os pinheiros esqueceram o pó

ao menos sobem bolas de sabão

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cor: Vermelho

conheço:
o frio, o gelo
o silêncio, o ruído
a dor, o ser e o não ser
a fome, a sede

conheço:
a noite que cai, que desce
pesada sobre as janelas,
os cristais que se partem
o veneno fechado, à espera

conheço:
cada ruga,
cada traço,
cada pedaço de pele
queimada, pintada, negra

conheço:
o passado
o presente
o futuro e sufoco

Manifesto C

De manhã

quando acordei, procurei o teu corpo:
os lençóis estavam frios
os vincos tinham desaparecido nos dias
que escorriam em gotas de água nas janelas fechadas

tossi, precisava de cortar o silêncio,
saber que estava ali
prisioneira, como o ar pesado
que descia do tecto, sobre o candeeiro apagado

quando me levantei, não senti os meus pés
nos teus pés, não me mexi, não tropecei
nos novelos de pó que se acumulavam
sobre as tábuas do quarto

falei, baixo, muito baixo, alto
e o eco rodeou-me o peito, apertou-o
apertou-o forte, até que os ossos se partiram
e era finalmente a noite





Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

Polaroid 21

Prostituta na beira da estrada

podia chamar-se Maria ou Madalena, ou até mesmo Maria Madalena. passo e não sei o seu nome, nunca o ouvi porque também nunca ninguém o ousou pronunciar. e eu passo, ao longo da estreita língua de alcatrão, ladeada por muros, que foram muros e agora são ruínas. e passo, todos os dias à mesma hora, sempre atrasada, a correr, entre a língua de alcatrão, os muros e os pinheiros que se agitam a minha passagem. a sua figura de estátua decadente, imóvel, na intersecção de duas estradas sinuosas, com a humidade que escorre entre as agulhas do abandono. passo com os olhos na rotunda, depois da última curva, apertada para a esquerda.
um dia acenei-lhe, um olá, um adeus. e porque não? se até as árvores me devolvem o vento que trago, e porque não?

Cor: Branco

Sim:
rim, dois
baço, um
estômago, um
fígado, um
pulmões, dois
intestinos, gigantes
pâncreas, um
coração, um

costelas, partidas sobre a mesa
peito dilacerado
tira-se o sangue com conchas de sopa, pastas e pastas de sangue coalhado
pernas, imóveis, ossos desnudos, estilhaçados, rasgam a pele, encarquecida, negra

estou aqui:
para morrer

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Pedradas XLVII

Tempos verbais

estou:
sem sono, sem fome, sem ruído
sem ar, sem silêncio, sem ti

desconheço quando chegará a hora
a hora que temos para morrer
descer, descer, descer e descer

massacrar o cal das paredes, partir os cristais
estilhaçar as tábuas, em pó
queimar o corpo que resta, cinzas em cinzas, às cinzas

qual é o dia que chega
pelo peito, de dentro, sai e sufoca
enche o quarto de ar, de chuva

malditos, malditos sejam
todos os esqueletos guardados, chaves perdidas
todos os destroços de todos os corpos, que fomos

John Frusciante - The Past Recedes

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXIV
venho aqui muitas vezes, desde que me lembro que eu sou eu. não sei onde comecei, onde vou acabar. os corredores primeiro eram gigantescos e eu percorria-os um a um, primeiro com o olhar, depois pelo meu próprio pé, agora com o pensamento. reconheço as paredes, o papel que as cobre, que tapa a tinta que recordo. fiz historias nessa mesma tinta, vivi dias a fio nesse papel de parede.
venho aqui muitas vezes, fico sentada na alcatifa laranja até que o sangue não consegue mais circular, até que o frio é a única sensação que fica, tenho o corpo pintado, colorido, escurecido, pisado demais, demais e demais. fico aqui até que alguém se lembre de me procurar, de me procurar e não me encontrar.

E agora o que resta de nós?

E agora o que resta de nós?
as paredes beberam o nosso silêncio
ficou marcado na cal, escureceu, apodreceu
os passos perderam-se entre tábuas, podres, ilusões prometidas

E agora o que resta de nós?
nas traves balouça a corda do enforcado,
o ar enche-se com o cheiro nauseabundo
do cadáver que somos, do corpo abandonado que fomos

E agora que resta de nós?
o ruído dos nossos passos não enche o ar
e os teus braços não riscam a escuridão do dia, da noite
e agora, o que resta de nós é nada

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Gumes


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

vou fingir que não te ouço
para não ter mais os pés frios.
quiseste tudo,
até as varandas da morte
por achares que uma só vida
[esta]
te não chegava.

deitei o corpo em telas brancas
onde pintavas estranhas paisagens,
esperei ao relento
que os teus olhos se abrissem,
rocei ervas daninhas
jurando que bebia as tuas mãos.

tive frio, fome, calor, sede
gritei ao silêncio
[não sou eu]

afiei as lâminas, desinfectei os punhais
rasguei as entranhas
e esperei que o sangue
[não o meu]
corresse

não guardei os lençóis,
não consegui adormecer a tua escova-de-dentes
e não estourei com os teus discos de vinil.
nem os livros que escondi
no teu ventre se fizeram biblioteca,
quanto mais os rabiscos
que ousei arrancar-me enquanto a carpete
já só exibia o pó dos teus pés.

parti os vidros, os espelhos, os cristais
bebi do suor da testa,
esqueci o sal da tua boca
e lavei os dentes até que os pulsos se partissem

depois?
desci as calças
e emprenhei a vergonha
[que nunca reparti contigo]:
comprei romagens,
assinei promessas
e assisti às missas
[mesmo não sendo domingo].
já só me falta beijar o demónio na boca
[nem ele suportaria o hálito do meu corpo].
Jorge Pimenta & Laura Alberto

Interpol-Hands Away

Manifesto XCVIII

Em lassos

em silêncio:
aperto as botas, com força
puxo os atacadores, traçam-me os dedos
e é sangue que cai sobre a carpete
sinto o tornozelo estilhaçar
ouço os pedaços de osso que se separam

do outro lado:
alguém fala, alguém diz:
distância

brilham os olhos da ratazana
enquanto espera o momento certo,
para beber, do sangue
que é lágrima, suor e sal

Polaroid 20


Fotografia de Pedro Polónio,
http://club-silencio.blogspot.com/

Nu

não sei o que vestir
todas as peças de roupa no armário são esqueletos
esquecidos, vazios

passo a mão por elas
o toque devolve-se áspero,
e a humidade provoca arrepios

abanam suavemente
enquanto as remexo
e nenhuma deles cobrirá a minha pele

não sei o que fazer
deitada na banheira, toda água é suja
e as memórias escorrem pelas paredes

rolos de vapor sobem, vagarosos
pintam o tecto com manchas
que não são mais que a ausência

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Pedradas XLVI

D. Quixote

sinto que as estações escorrem,
lá fora, do outro lado do vidro da janela,
alguém atira uma pedra e é um suspiro que morre

[que queria eu?]

os sonhos secaram, presos nas costas dos gigantes

um cavalo, uma lança, um moinho
ainda que em ruínas, ainda que miragem
um moinho emproado sobre o monte

[e que monte seria?]

anda, corre meu fiel amigo,
ao teu lado
o dia galopa no dorso de mil tempestades

[quantas batalhas?]

são histórias, estas que nos contam
alguém parte um vidro
e é o vento que foge, lesto

Ponte D. Luís

gosto de ficar assim:
imóvel, a respirar lentamente, parada
sentir o frio que me toca a pele
e penetra as omoplatas, as costas, as coxas

gosto de ficar assim:
em silêncio, esquecida, gelada,
de fundo, o ruído do eléctrico
carrega rolos de lã que não são meus

gosto de ficar assim:
enquanto lá longe os barcos sobem e descem e sobem
para voltar a descer o rio cinzento
e sou eu que mergulho nele, até aos bancos de areia

gosto de ficar assim:
a afagar o ventre, deslindando paralelos de granito, tristes
alguém passa descalço, pés sujos sobre o ferro oxidado
e sou eu que te bebo de uma só vez, até ficar sem fôlego

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Pedradas XLV

Vómito

vómito:
mancha esquecida sobre o chão de tijoleira,
conspurca o pensamento, molda as imagens
com o seu raiar de sangue velho,
satura o ar com o seu odor acre

vómito:
fervem os espaços do tempo,
quebram-se os espelhos em ruído,
e os vermes rastejam numa tentativa
de libertação, de alienação

o vómito continua lá, seco
[deito a mão ao peito
o coração ainda lá está]

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Manifesto XCVII

Segredo

se te contar um segredo, prometes que o esqueces?
ainda ontem senti as costas arquearam-se
quando por mim passavas:
vento
e tive frio, sede, fome e frio

se to disser bem baixinho, finges que o ouves?
hoje mergulhei bem fundo, na banheira
onde fomos:
tango
e vi-me perdida, esquecida, sozinha

arrasto os pés pelo quarto,
pela sala, pela casa até à porta:
o sangue que corre é gelo e silêncio

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XXIII
aquele tanque parecia uma piscina gigantesca. aquela água gélida, conseguia escaldar-me o corpo. naqueles dias, em que tudo tinha dimensões exageradas, eu era um ponto. pequenino, à deriva, ao sabor de todo aquele vento, que corria, que ainda corre mas agora lento, cansado.
ouvia a lâmina romba, afastar violentamente a terra, o torto cabo de madeira a deslocar o ar, a terra gemia, sofria e ficava assim, remexida. agitavam-se as roupas na corda, ressequidas pelo vento e a terra continuava a sofrer.
aquele tanque, aquela água, limpava-me os joelhos, desinfectava-me as feridas, alimentava a minha boca. E eu tenho saudades daquele quintal, esquecido.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Pedradas XLIV

Tosca

já não há princesas neste pedaço de terra,
nunca as houve,
ostentam as orlas dos vestidos conspurcadas
enquanto mostram falsos sorrisos de gengivas com escorbuto

respiram enxofre pálido, agitando leques de seda
gastos, esquecidos, envelhecidos
falam de montes, de prados húmidos pelas manhãs
de nuvens que lhes tocam a face e
do sol que lhes aquece o peito

já não há princesas de verdade neste quinhão,
secou a tinta nos aparos
e a historia não se pode continuar a escrever

Polaroid 19

Hematoma

rastejo pelos ladrilhos frios do quarto
até que sangrem os joelhos
marcando o mármore limpo que ainda resta

percorro as paredes frias
com os dedos tortos,
quebram-se os ossos ruidosamente

bebo dos espaços do ar
a humidade que sufoca,
estalam as gengivas em rolos de fumo

distante, sou eu aí
tombada no canto, em silêncio

Polaroid 18

Boneca num escaparate

oferece-se:
braço de plástico semi-articulado
ostentando mão com um dedo em falta,
nos restantes, unhas pintadas de vermelho

dá-se:
pernas de plástico descolorado, estáticas
ornamentadas por meias de rede pretas,
pés cobertos por saltos altos, pretos


troca-se:
torso de plástico rígido, frio
por um pedaço de peito,
quente, distante

procura-se:
uma mão doce
que afague o corpo e limpe a pele

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

Lugares


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

trago-te sempre às costas
e como eu gosto dos teus dedos.
suspiro quando percorrem a minha coluna,
brincam violentamente com a espinha
nos lugares onde as metáforas fazem ninho.

as costas são o litoral do corpo.
estendem ímanes sobre as mãos
e todos os frutos silvestres por roer
mesmo se nenhum de nós sabe o jogo
onde se lançam dados viciados,
mesmo se nenhum de nós sabe o fogo
onde navegam os deuses alados.

e eu quero perder-me
aí, onde os mapas se rasgam ao vento
e a areia molda os nossos corpos
[e quero que passes, quero que fiques].
e eu quero perder-me
aí, na tempestade das pernas
e na orla dos joelhos que ardem
e quero fugir, quero ficar].

se mergulhar um dia
sei que não vou ficar, aí
[as horas lentas
escorrem pelas paredes
mancham os lençóis].

se cair um dia
sei que não voltarás, aqui
[o pássaro será de papel
girando em órbitas de giz
atadas às linhas da tua mão].

e esse espaço que o teu corpo ocupa
jamais será meu.

laura alberto & jorge pimenta


Legendary Tiger Man "Life Aint Enough For You"