Porta
vou ficar aqui, imóvel
dissolvida nos grãos de pó
que em tempos construíam todas as casas
vou ficar aqui, serena
a observar a tinta que de desprende das paredes,
o triunfo do bolor
vou ficar aqui, a respirar
o odor que se desprende dos armários
que foram arcas de tesouros, de sonhos, de ilusões
vou ficar aqui, a dormir
até que o tempo se esqueça
de escorrer pelo tecto
vou ficar aqui, à espera
que os ossos sejam pó, o sangue seque,
e os olhos vejam a saída
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
Manifesto XCVI
Estações
se tenho as tuas mãos
desenhadas no meu peito,
a culpa não é minha
[carrego todos os dias
o feno sobre os ombros, é Inverno]
se trago no olhar
as paisagens que bebeste,
a culpa não é minha
[busco a fonte
onde a água me afogará, é Verão]
se ouço a tua voz
silenciosa, sussurrar-me ao ouvido,
a culpa não é minha
[perdi as amoras
que outrora beijei, é Outono]
se tenho o teu corpo
colado no meu,
a culpa não é minha
[esqueci que o tempo,
o tempo passou e é Primavera]
se tenho as tuas mãos
desenhadas no meu peito,
a culpa não é minha
[carrego todos os dias
o feno sobre os ombros, é Inverno]
se trago no olhar
as paisagens que bebeste,
a culpa não é minha
[busco a fonte
onde a água me afogará, é Verão]
se ouço a tua voz
silenciosa, sussurrar-me ao ouvido,
a culpa não é minha
[perdi as amoras
que outrora beijei, é Outono]
se tenho o teu corpo
colado no meu,
a culpa não é minha
[esqueci que o tempo,
o tempo passou e é Primavera]
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Manifesto XCV
Foragido
trazes sempre a mala cheia de nada
e marcas de água na biqueira das botas
sujas de pó e de terra
[sim, fiquei aqui
imóvel, a respirar]
falas dos montes áridos, dos lagos frios
cobres me com o vento seco
e pintas-me com estradas de alcatrão quente
[sim, fiquei aqui
silenciosa, a respirar]
tua pele é sal, é areia, é calor
espero que me contes a história
do assalto na berma da estrada
[sim, fiquei aqui
a respirar, sozinha]
chega a noite, chegamos nós,
cansados, suados, deitados num quarto de hotel
chega a língua áspera da despedida
Robert Frank
trazes sempre a mala cheia de nada
e marcas de água na biqueira das botas
sujas de pó e de terra
[sim, fiquei aqui
imóvel, a respirar]
falas dos montes áridos, dos lagos frios
cobres me com o vento seco
e pintas-me com estradas de alcatrão quente
[sim, fiquei aqui
silenciosa, a respirar]
tua pele é sal, é areia, é calor
espero que me contes a história
do assalto na berma da estrada
[sim, fiquei aqui
a respirar, sozinha]
chega a noite, chegamos nós,
cansados, suados, deitados num quarto de hotel
chega a língua áspera da despedida
Robert Frank
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller
XXII
tenho uma cicatriz no joelho esquerdo. por mais que tente enfeita a rótula esquerda, marca o joelho esquerdo. mas não me dói.
tenho uma queimadura na mão esquerda. não quero que daí saia, mas saiu. e dói imenso.
encher com água, a banheira suja, do quarto frio, na mansão abandonada.
percorrer, com os pés descalços o mármore bolorento, dar um pontapé em qualquer coisa, acender um cigarro, mergulhar naquela água, quentíssima, quente, fria, gelada.
esperar a serpente que entra pela janela entreaberta.
Fotografia de Jorge Molder, Um dia Cinzento
tenho uma cicatriz no joelho esquerdo. por mais que tente enfeita a rótula esquerda, marca o joelho esquerdo. mas não me dói.
tenho uma queimadura na mão esquerda. não quero que daí saia, mas saiu. e dói imenso.
encher com água, a banheira suja, do quarto frio, na mansão abandonada.
percorrer, com os pés descalços o mármore bolorento, dar um pontapé em qualquer coisa, acender um cigarro, mergulhar naquela água, quentíssima, quente, fria, gelada.
esperar a serpente que entra pela janela entreaberta.
Fotografia de Jorge Molder, Um dia Cinzento
Pedradas XLIII
Verniz vermelho
amo todo esse cinzento
que derramas com a língua inflamada:
pedras cinzentas, árvores cinzentas, nuvens cinzentas
alcatrão cinzento, traços cinzentos, bermas cinzentas
rostos cinzentos, sorrisos cinzentos, olhos cinzentos
[rompido,
náusea, vómito]
E hoje pintei as unhas!
amo todo esse cinzento
que derramas com a língua inflamada:
pedras cinzentas, árvores cinzentas, nuvens cinzentas
alcatrão cinzento, traços cinzentos, bermas cinzentas
rostos cinzentos, sorrisos cinzentos, olhos cinzentos
[rompido,
náusea, vómito]
E hoje pintei as unhas!
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
Manifesto XCIV
Deixa cair
consegues sentir
o vento que corre
ligeiro nos teus dedos dos pés
enquanto deitas o teu corpo
e cobres a pele nua, com o resto do que foste
esta aqui sou eu
que te vem morder, despedaçar
fazer sangrar
em silêncio, imóvel
repousas
consegues sentir
o vento que corre
ligeiro nos teus dedos dos pés
enquanto deitas o teu corpo
e cobres a pele nua, com o resto do que foste
esta aqui sou eu
que te vem morder, despedaçar
fazer sangrar
em silêncio, imóvel
repousas
morfina
Braga, pormenor, Fotografia de Jorge Pimenta
já não sei quantas vezes
me escorreu dos dedos a tua morte.
ficava imóvel a olhar as mãos como se
em cada linha exangue adormecesse o perdão.
sei lá se deves acreditar…
os poetas vendem sempre os sonhos
que plantaram do lado de fora do coração,
mesmo que com o estore fechado.
deixa que a agulha rasgue a pele,
penetre as veias emaranhadas
jorre o sangue em golfadas
de gozo, de luxúria
até que o corpo arda em orgasmos
e se tolde a imagem em negro.
o fósforo risca a noite e acende o rosto.
tem cara feia, mau hálito e não toma banho.
falta-lhe ser homem,
aguçar o sexo
gastar a saliva na pele olorosa
onde a primavera esconde os segredos
que jasão julgou serem de ouro
[qual quê? apenas gemidos em prosa perdida].
é um poeta. um semi-homem. uma ave quase-louca.
já não sei o que te dizer
parece que todas as palavras arderam.
gastou-se a imagem em bancos de nevoeiro
e o farol queda-se em silêncio
[malditas âncoras, malditas
enrolam-se em sargaço
que vem apodrecer na praia
e o sal não te marca mais o corpo].
bocejam os poetas, esquecidos nos escolhos.
a loucura é a única certeza dos amantes.
o amor é a derradeira mentira dos poetas.
Jorge Pimenta e Laura Alberto
The Legendary Tigerman - Naked Blues
já não sei quantas vezes
me escorreu dos dedos a tua morte.
ficava imóvel a olhar as mãos como se
em cada linha exangue adormecesse o perdão.
sei lá se deves acreditar…
os poetas vendem sempre os sonhos
que plantaram do lado de fora do coração,
mesmo que com o estore fechado.
deixa que a agulha rasgue a pele,
penetre as veias emaranhadas
jorre o sangue em golfadas
de gozo, de luxúria
até que o corpo arda em orgasmos
e se tolde a imagem em negro.
o fósforo risca a noite e acende o rosto.
tem cara feia, mau hálito e não toma banho.
falta-lhe ser homem,
aguçar o sexo
gastar a saliva na pele olorosa
onde a primavera esconde os segredos
que jasão julgou serem de ouro
[qual quê? apenas gemidos em prosa perdida].
é um poeta. um semi-homem. uma ave quase-louca.
já não sei o que te dizer
parece que todas as palavras arderam.
gastou-se a imagem em bancos de nevoeiro
e o farol queda-se em silêncio
[malditas âncoras, malditas
enrolam-se em sargaço
que vem apodrecer na praia
e o sal não te marca mais o corpo].
bocejam os poetas, esquecidos nos escolhos.
a loucura é a única certeza dos amantes.
o amor é a derradeira mentira dos poetas.
Jorge Pimenta e Laura Alberto
The Legendary Tigerman - Naked Blues
Manifesto XCIII
Afogamento
rompe a pele seca que cobre:
ossos, sonhos, dias desfeitos, passado
e o dia cumpre-se lá fora
quando procurares,
não te esqueças de ver
a vaga que se dissolve no oceano
rompe a pele seca que cobre:
ossos, sonhos, dias desfeitos, passado
e o dia cumpre-se lá fora
quando procurares,
não te esqueças de ver
a vaga que se dissolve no oceano
Manifesto XCII
Sede
entra silenciosa pelo peito,
pelas frinchas escuras das costelas
e aloja-se nos pulmões
consome os tecidos à sua volta
musculo, tendão, carne
no fim, só a pele guarda o pó
entra silenciosa pelo peito,
pelas frinchas escuras das costelas
e aloja-se nos pulmões
consome os tecidos à sua volta
musculo, tendão, carne
no fim, só a pele guarda o pó
domingo, 23 de janeiro de 2011
Manifesto XCI
Viagem
hoje, ou talvez amanhã,
ou mesmo depois de amanhã, parto
de peito vazio, gelado
nenhuma gota de orvalho
mereceu o calor das tuas mãos
enquanto rolava granito fora
[amanhã, ou talvez mesmo hoje]
apodreceram os anturios
esguios em jarras de vidro sujo, baço
ninguém soube do seu odor
[talvez depois de amanhã, ou amanhã]
fecham-se as gavetas
desabitadas
entregues ao esquecimento, ao bolor
[hoje, ou mesmo hoje]
resta a palidez
para carregar, por aí
hoje, ou talvez amanhã,
ou mesmo depois de amanhã, parto
de peito vazio, gelado
nenhuma gota de orvalho
mereceu o calor das tuas mãos
enquanto rolava granito fora
[amanhã, ou talvez mesmo hoje]
apodreceram os anturios
esguios em jarras de vidro sujo, baço
ninguém soube do seu odor
[talvez depois de amanhã, ou amanhã]
fecham-se as gavetas
desabitadas
entregues ao esquecimento, ao bolor
[hoje, ou mesmo hoje]
resta a palidez
para carregar, por aí
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Manifesto XC
Dor
sei que já fomos felizes, algures
quando as ondas se desfaziam,
na linha da praia
e o mundo era o teu corpo
sei que já vi o teu olhar
na espuma que minga, amarela, suja
sobre os rochedos abandonados
e a noite entrava pelos teus braços
sei que já fomos felizes, em qualquer lado
numa tarde isolada, sem vento, sem ar
sobre o teu corpo
nu
Legendary Tigerman - Then Came the Pain
sei que já fomos felizes, algures
quando as ondas se desfaziam,
na linha da praia
e o mundo era o teu corpo
sei que já vi o teu olhar
na espuma que minga, amarela, suja
sobre os rochedos abandonados
e a noite entrava pelos teus braços
sei que já fomos felizes, em qualquer lado
numa tarde isolada, sem vento, sem ar
sobre o teu corpo
nu
Legendary Tigerman - Then Came the Pain
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
Manifesto LXXXIX
Pó
acumula-se nas prateleiras, organizadamente
o pó que cai, sorrateiro, silencioso
forma montanhas íngremes de dor
assim disposto na madeira, entre
placas e placas de tempo
desenha linhas de rostos, de estradas
de corpos, tu e eu, despidos
sobre uma cama de lençóis brancos,
imóveis, frios
conheço cada um daqueles grãos de pó,
um beijo, uma carícia, um grito
recordo um a um aqueles grão de pó,
um segundo, uma tarde num dia perdido
no canto do quarto, lambo
as feridas, para que se curem
cada grão de pó despoleta uma infecção
sufoco no pó que me cobre o rosto
Fotografia Gilberto Oliveira
acumula-se nas prateleiras, organizadamente
o pó que cai, sorrateiro, silencioso
forma montanhas íngremes de dor
assim disposto na madeira, entre
placas e placas de tempo
desenha linhas de rostos, de estradas
de corpos, tu e eu, despidos
sobre uma cama de lençóis brancos,
imóveis, frios
conheço cada um daqueles grãos de pó,
um beijo, uma carícia, um grito
recordo um a um aqueles grão de pó,
um segundo, uma tarde num dia perdido
no canto do quarto, lambo
as feridas, para que se curem
cada grão de pó despoleta uma infecção
sufoco no pó que me cobre o rosto
Fotografia Gilberto Oliveira
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
Manifesto LXXXVIII
Cozinheiro
afia o cozinheiro
seus utensílios de inox, paciente
repousa a carne, plácida
sobre mesas de mármore branca
dá náuseas, o cheiro
a desinfectante
impaciente, espera a carne
arrumada em bandejas
num ápice
cortam-se os músculos, a pele, os tendões
não por esta ordem,
espirra sangue por toda a parte
sobe à boca
um vómito contido
de fel, de desejo
a carne branca espera
Fotografia de Laura Alberto
afia o cozinheiro
seus utensílios de inox, paciente
repousa a carne, plácida
sobre mesas de mármore branca
dá náuseas, o cheiro
a desinfectante
impaciente, espera a carne
arrumada em bandejas
num ápice
cortam-se os músculos, a pele, os tendões
não por esta ordem,
espirra sangue por toda a parte
sobe à boca
um vómito contido
de fel, de desejo
a carne branca espera
Fotografia de Laura Alberto
Manifesto LXXXVII
Jorge Molder
Adeus
não te sinto dentro de mim
ficaram entranhas despedaçadas, aquando
da tua passagem em fumo,
o sangue coagulou, em poças, aos meus pés
[e eu quero afogar me nele]
não respiro o teu corpo
arrancaram-se pedaços de pele, enquanto
falavas de infinitos granitos,
os olhos esvaziaram-se, em mágoa, à minha volta
[e eu quero ver esta cegueira]
não sinto os teus pés
perderam-se nos trilhos, onde
desde sempre estiveste
o peito guarda ramos secos, partidos
[e eu saio a correr]
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
Pedradas XLII
Jogo
sobre o tabuleiro de mármore
de cansativos quadrados negros e brancos
enfadonhas no seu silêncio
as peças do jogo inútil
sonha o peão cortar a garganta, sem dó
de todas as peças, que inocentes
povoam a aldeia
oculta entre nuvens de fumo tóxico
foge o rei, da vil lança
nos punhos dos cobardes
corre o sangue, entre campos
de lama, fétida
xeque?
mate
Mundo Cão - Morfina
sobre o tabuleiro de mármore
de cansativos quadrados negros e brancos
enfadonhas no seu silêncio
as peças do jogo inútil
sonha o peão cortar a garganta, sem dó
de todas as peças, que inocentes
povoam a aldeia
oculta entre nuvens de fumo tóxico
foge o rei, da vil lança
nos punhos dos cobardes
corre o sangue, entre campos
de lama, fétida
xeque?
mate
Mundo Cão - Morfina
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
Manifesto LXXXVI
À queima-roupa
não é este o sítio, desconheço
estas árvores, estes muros, este musgo
que cobre os inertes estupefactos
desconheço este sítio, não
será aqui que afundarei as botas
em lama fétida, raiada de sangue
do lado esquerdo um mendigo
do lado direito o seu cão rafeiro
passo sem pensar, sem ver, sem querer
não é este o sitio, dispara
o revolver
não me apanhas
não é este o sítio, desconheço
estas árvores, estes muros, este musgo
que cobre os inertes estupefactos
desconheço este sítio, não
será aqui que afundarei as botas
em lama fétida, raiada de sangue
do lado esquerdo um mendigo
do lado direito o seu cão rafeiro
passo sem pensar, sem ver, sem querer
não é este o sitio, dispara
o revolver
não me apanhas
Manifesto LXXXV
Lázaro
acaso saberei?
sei bem a fenda que nos espera, algures
uma mistura desleixada de saibro e terra, humidade
que descansa nos espaços do silêncio,
não existe ar, os dias
cumprem-se todos iguais, às estações
resta sempre o cabelo, como uma coifa, imundo
de pó molhado, de lama seca
os olhos esvaziam-se dando lugar a fossas, no fosso
de cinzento chumbo, arregalam-se os dentes
perante carne seca, mirrada, colada ao esqueleto
que se quebra ao sinal do vento, das pás dos homens
as unhas conservam toda a imundice dos vivos
testemunham o entorpecer dos dedos, quedos
não é esta a altura
PONTO
acaso saberei?
sei bem a fenda que nos espera, algures
uma mistura desleixada de saibro e terra, humidade
que descansa nos espaços do silêncio,
não existe ar, os dias
cumprem-se todos iguais, às estações
resta sempre o cabelo, como uma coifa, imundo
de pó molhado, de lama seca
os olhos esvaziam-se dando lugar a fossas, no fosso
de cinzento chumbo, arregalam-se os dentes
perante carne seca, mirrada, colada ao esqueleto
que se quebra ao sinal do vento, das pás dos homens
as unhas conservam toda a imundice dos vivos
testemunham o entorpecer dos dedos, quedos
não é esta a altura
PONTO
"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller
XXI
será, provavelmente mais um espelho, de cantos partidos, costas oxidadas pelo tempo, algures deixado sozinho no silêncio que corria, corre e correrá
o grito sairá quase mudo, ensurdecedor perante toda aquela humidade e o cheiro bafiento a esquecimento
erguer-se perante ele e ver a imagem que é devolvida, o troco de toda a brincadeira, sem demora:
não reconhecer a carne que cobre o esqueleto, numerar as veias, uma por uma, que atravessam todo o musculo
não perceber o rosto diante si, duas bochechas mirradas, olhos vazios de água, nariz delgado ornamentado por uma, uma só cicatriz, uma boca de espanto
com um qualquer dedo, tocar o espelho, no sitio preciso do coração. afinal ele bate, sempre, conhecer, reconhecer.
mesmo que os joelhos estejam esfolados, cobertos de sangue seco. mesmo que a pele que veste seja um mapa de nódoas negras e cicatrizes, chegará a hora de sair para o campo, de batalha
será, provavelmente mais um espelho, de cantos partidos, costas oxidadas pelo tempo, algures deixado sozinho no silêncio que corria, corre e correrá
o grito sairá quase mudo, ensurdecedor perante toda aquela humidade e o cheiro bafiento a esquecimento
erguer-se perante ele e ver a imagem que é devolvida, o troco de toda a brincadeira, sem demora:
não reconhecer a carne que cobre o esqueleto, numerar as veias, uma por uma, que atravessam todo o musculo
não perceber o rosto diante si, duas bochechas mirradas, olhos vazios de água, nariz delgado ornamentado por uma, uma só cicatriz, uma boca de espanto
com um qualquer dedo, tocar o espelho, no sitio preciso do coração. afinal ele bate, sempre, conhecer, reconhecer.
mesmo que os joelhos estejam esfolados, cobertos de sangue seco. mesmo que a pele que veste seja um mapa de nódoas negras e cicatrizes, chegará a hora de sair para o campo, de batalha
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
Manifesto LXXXIV
Vertigem
sinto a areia que escorre pelos dedos, magros, torcidos
sem dor sobre a memória do teu corpo
enquanto se contorce a espinha, perante o eco
distante de um silêncio amargo
o querer abrir os olhos, mesmo que seja
de ácido o futuro, de pó o ar que respiro
o querer tocar o abraço, sendo ele de fumo
maledicente, asfixiante
desejo a vida, que se esconde
nos becos de uma existência tortuosa
mesmo que insana, falsa, mentirosa
[ora agora minto eu]
o punhal cravar-se-á
e o vómito jorrará pelos dentes
libertando o cheiro azedo, imundo
de todos, todos os que foram
mão morta -arrastando o seu cadáver
sinto a areia que escorre pelos dedos, magros, torcidos
sem dor sobre a memória do teu corpo
enquanto se contorce a espinha, perante o eco
distante de um silêncio amargo
o querer abrir os olhos, mesmo que seja
de ácido o futuro, de pó o ar que respiro
o querer tocar o abraço, sendo ele de fumo
maledicente, asfixiante
desejo a vida, que se esconde
nos becos de uma existência tortuosa
mesmo que insana, falsa, mentirosa
[ora agora minto eu]
o punhal cravar-se-á
e o vómito jorrará pelos dentes
libertando o cheiro azedo, imundo
de todos, todos os que foram
mão morta -arrastando o seu cadáver
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
Manifesto LXXXIII
Andy Warhol Pine Barrens Tree Frog
Príncipe
Sapo
Sapinho
Anda cá
Sapo
Sapinho
Anda cá
Quero dar-te um beijinho
Sapo
Sapinho
Anda cá
Quero dar-te um beijinho
Abraçar esse teu corpinho
Sapo
Sapinho
Anda cá
Quero dar-te um beijinho
Abraçar esse teu corpinho
Afogar-me no teu charquinho
Sapo
Sapinho
Anda cá fumar um cigarrinho
Mão Morta "Novelos da Paixão"
Polarid 15
Desabamento de um coração
músculo: tum tum, tum tum
batendo sobre o peito, oculto
pedaço de carne: tum tum, tum tum,
até que os vermes chegam, entre mentiras de fumo
carne esponjosa: tum tum, tum tum,
batendo sobre o peito, seco
sai
entra
sai
entra
sai
todo esse sangue infecto
sulfuroso entre os interstícios
tum tum, tum tum
Andy Wharol
músculo: tum tum, tum tum
batendo sobre o peito, oculto
pedaço de carne: tum tum, tum tum,
até que os vermes chegam, entre mentiras de fumo
carne esponjosa: tum tum, tum tum,
batendo sobre o peito, seco
sai
entra
sai
entra
sai
todo esse sangue infecto
sulfuroso entre os interstícios
tum tum, tum tum
Andy Wharol
Pedradas XLI
Cobardia
corre o sangue em veias gastas, entupidas
da imundice da terra em que te afogas
sob a pele os músculos apodrecidos, ruidosos
soltam-se dos ossos plásticos
todo o esqueleto de peças partidas, perdidas
escondidas no silêncio dos teus braços
queres respirar?
[não quero que respires,
quero que respires o lodo líquido
no qual te afogas,
quero que não respires]
corre o sangue em veias gastas, entupidas
da imundice da terra em que te afogas
sob a pele os músculos apodrecidos, ruidosos
soltam-se dos ossos plásticos
todo o esqueleto de peças partidas, perdidas
escondidas no silêncio dos teus braços
queres respirar?
[não quero que respires,
quero que respires o lodo líquido
no qual te afogas,
quero que não respires]
Man Ray, Yves Tanguy, Joan Miro e Max Morise, Cadavre Exquis, 1928
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
Tendinites V
Jorge Molder, The interpretation of dreams
Onde ficam os nossos pensamentos?
Que lugar é esse onde não entramos?
Por que caminhos nos perdemos
Sem nunca saber o que fomos?
Os locais da mente são apenas fugidios como nós?
Mente-nos a mente sobre o espaço que queremos agarrar?
[Entre as fragas de granito, ficam os risos
dos loucos cuja loucura é a cegueira.]
Onde é que ficamos?
Tu e eu, eu e tu.
Onde é nos deixamos,
imóveis?
A cabeça é o terreno da ilusão
E o corpo a maçã podre das conservas e compotas.
Entre utensílios de alumínio, meticulosamente desinfectados
Há-de estar a faca de trinchar.
Laura Alberto / João Miguel Ferreira
Tendinites IV
peguei no comando e coloquei a vida em pausa
olhei-me parado e nessa quietude deu-se a aparição
vinha envolta em rolos de fumo, frio, gelo e novamente vento
trazia os dias que passam silenciosos pelas estações
a dor de cabeça era exterior a mim
e tudo era plástico e artificial
de que adianta ter jarras e jarras de cristal
o pó cai sempre sobre as flores
a mudança afinal acontece quando nos fixamos
no que de fora nos incomoda
amanhã, esqueci a náusea que me aperta
de fora, de dentro, de fora de dentro de fora
e o fantasma permanecerá errando
Laura Alberto / João Miguel Ferreira
Fotografia de Robert Frank
olhei-me parado e nessa quietude deu-se a aparição
vinha envolta em rolos de fumo, frio, gelo e novamente vento
trazia os dias que passam silenciosos pelas estações
a dor de cabeça era exterior a mim
e tudo era plástico e artificial
de que adianta ter jarras e jarras de cristal
o pó cai sempre sobre as flores
a mudança afinal acontece quando nos fixamos
no que de fora nos incomoda
amanhã, esqueci a náusea que me aperta
de fora, de dentro, de fora de dentro de fora
e o fantasma permanecerá errando
Laura Alberto / João Miguel Ferreira
Fotografia de Robert Frank
"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller
XX
entram cavalos pela janela. não me lembro sequer de um dia a ter visto aberta ou fechada, não me lembro de alguma vez a ter visto assim: encoberta pelas portadas de madeira. as mesmas que o tempo tratou de arrancar a tinta, a cor.
sai o fumo invisível pela porta, pela sala, pelas escadas, pela porta que dá para uma rua: aquela onde não corri, não caí, não fiquei à espera que se abrisse a tal porta, debaixo de uma gelada chuva.
mudo os tacos do quarto, um puzzle com várias soluções, mas sobra sempre cimento, cotão, cimento e mais cotão.
abro e fecho os armários, as gavetas, os guarda-vestidos sem vestidos, sem memória.
recolho o que não conheço, não reconheço. tenho um nome, um nome que nunca ouvi, que nunca ouvirei mais, mas que existiu algures entre os dias do calendário.
na verdade, o que entra é frio: a saudade de saber sentir saudade
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
entram cavalos pela janela. não me lembro sequer de um dia a ter visto aberta ou fechada, não me lembro de alguma vez a ter visto assim: encoberta pelas portadas de madeira. as mesmas que o tempo tratou de arrancar a tinta, a cor.
sai o fumo invisível pela porta, pela sala, pelas escadas, pela porta que dá para uma rua: aquela onde não corri, não caí, não fiquei à espera que se abrisse a tal porta, debaixo de uma gelada chuva.
mudo os tacos do quarto, um puzzle com várias soluções, mas sobra sempre cimento, cotão, cimento e mais cotão.
abro e fecho os armários, as gavetas, os guarda-vestidos sem vestidos, sem memória.
recolho o que não conheço, não reconheço. tenho um nome, um nome que nunca ouvi, que nunca ouvirei mais, mas que existiu algures entre os dias do calendário.
na verdade, o que entra é frio: a saudade de saber sentir saudade
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
Manifestos LXXXII
Poeta
quer o poeta nuvens de sonho, altas no céu de azul
enquanto arrasta os pés no lodo dos dias,
busca os cêntimos na fenda do tempo
que passa sem piedade nas rugas do peito
bebe o poeta a água de chuva, caindo das caleiras rotas
afoga os dedos em promessas de vento
os cabelos embranquecem, a carne separa-se dos ossos
e bebe a água da chuva a alma do poeta
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
quer o poeta nuvens de sonho, altas no céu de azul
enquanto arrasta os pés no lodo dos dias,
busca os cêntimos na fenda do tempo
que passa sem piedade nas rugas do peito
bebe o poeta a água de chuva, caindo das caleiras rotas
afoga os dedos em promessas de vento
os cabelos embranquecem, a carne separa-se dos ossos
e bebe a água da chuva a alma do poeta
Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
Polaroid 14
O rei
meu pai veste uma cota de ferro, é o D. Afonso Henriques
segura a espada de lâmina afiada com a mão esquerda, é o D. Afonso Henriques
monta no cavalo, a galope, a galope pelos campos, é o D. Afonso Henriques
sangra do peito no dia de todos os dias
meu pai é o D. Afonso Henriques, quando o tempo o teima ser, tempo
meu pai veste uma cota de ferro, é o D. Afonso Henriques
segura a espada de lâmina afiada com a mão esquerda, é o D. Afonso Henriques
monta no cavalo, a galope, a galope pelos campos, é o D. Afonso Henriques
sangra do peito no dia de todos os dias
meu pai é o D. Afonso Henriques, quando o tempo o teima ser, tempo
domingo, 9 de janeiro de 2011
Polaroid 13
Escamada
na velha cave, esquecida
marca o dia numa agenda de gaveta, capa de couro
estava vestida de negro
no dia em que os seus cabelos se tingiram de branco
na cave esquecida, velha
deixa que fujam as estações lá fora, inala o cheiro a bolor
no dia em que se esqueceu de andar
na esquecida cave velha
tira a mão do bolso, agarra a navalha ferrugenta
a mesma que lhe traçou os pulsos
e nesse dia lembrou-se como amanhar o peixe
Rage Against The Machine - Freedom live 1994
na velha cave, esquecida
marca o dia numa agenda de gaveta, capa de couro
estava vestida de negro
no dia em que os seus cabelos se tingiram de branco
na cave esquecida, velha
deixa que fujam as estações lá fora, inala o cheiro a bolor
no dia em que se esqueceu de andar
na esquecida cave velha
tira a mão do bolso, agarra a navalha ferrugenta
a mesma que lhe traçou os pulsos
e nesse dia lembrou-se como amanhar o peixe
Rage Against The Machine - Freedom live 1994
sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
Polaroid 12
Tatuagem
nas costas da mão: o sal da boca
nas palmas da mão: uma folha em branco
saca a navalha do peito
trilha o caminho que ilude
através da pele, do musculo, do tendão, do osso
seja o sangue a água que lava
todos os micróbios do silêncio
nas costas da mão: o sal da boca
nas palmas da mão: uma folha em branco
saca a navalha do peito
trilha o caminho que ilude
através da pele, do musculo, do tendão, do osso
seja o sangue a água que lava
todos os micróbios do silêncio
"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller
XIX
hoje reparei que cresciam ramos no telhado, entre manchas de ferrugem distingui ramos secos, afinal, molhados, frios. com um simples esticar do braço, um distraído mover de mão, conseguia pegar em qualquer um daqueles que ramos, que caiam, atingíveis.
sempre alta estivera aquela prateleira, disfarçada entre duas portas corrediças de contraplacado, inatingível. sentada no corredor de alcatifa grená, admirava aquela prateleira. um dia alguém a forrou de oleado florido, no futuro seriam precisos pionés, e noutro futuro acabaria por se rasgar, de vez, o oleado florido.
nas tardes de Inverno admirava aquela prateleira, alta, distante, impossível de escalar, mesmo com um velho banco de madeira encardida.
a alta prateleira guardava, religiosamente, uma lata de folha, cor creme, na qual, uns anos mais tarde, aprendi a ler: bolachas. para quê saber ler? sabia perfeitamente que lá guardavam-se as bolachas maria, torradas e tostadas. sabia perfeitamente que todas as tardes comia duas ou três ou quatro daquelas bolachas. ou até mesmo cinco ou seis.
hoje, que me adianta saber ler e escrever, procuro na mesma lata de folha, cor creme, as letras que posso usar.
hoje reparei que cresciam ramos no telhado, entre manchas de ferrugem distingui ramos secos, afinal, molhados, frios. com um simples esticar do braço, um distraído mover de mão, conseguia pegar em qualquer um daqueles que ramos, que caiam, atingíveis.
sempre alta estivera aquela prateleira, disfarçada entre duas portas corrediças de contraplacado, inatingível. sentada no corredor de alcatifa grená, admirava aquela prateleira. um dia alguém a forrou de oleado florido, no futuro seriam precisos pionés, e noutro futuro acabaria por se rasgar, de vez, o oleado florido.
nas tardes de Inverno admirava aquela prateleira, alta, distante, impossível de escalar, mesmo com um velho banco de madeira encardida.
a alta prateleira guardava, religiosamente, uma lata de folha, cor creme, na qual, uns anos mais tarde, aprendi a ler: bolachas. para quê saber ler? sabia perfeitamente que lá guardavam-se as bolachas maria, torradas e tostadas. sabia perfeitamente que todas as tardes comia duas ou três ou quatro daquelas bolachas. ou até mesmo cinco ou seis.
hoje, que me adianta saber ler e escrever, procuro na mesma lata de folha, cor creme, as letras que posso usar.
quarta-feira, 5 de janeiro de 2011
Polaroid 11
Acidente como prato principal
se engolir um caroço, sufoca:
o ar pára, o sangue corre cada vez mais rápido
os olhos esbugalham-se de dor
os pulmões exigem,
o ar continua parado
se engolir dois caroços, sufoca:
o ar pára, o sangue dilata-se nas veias
o peito não contém um só coração
os pulmões explodem
o ar continua parado
se engolir em seco:
o ar pára, o sangue corre até às pedras
o peito explode em surdina
os pulmões mirram sobre as costelas
o ar começa a circular
quando engolir, recorde:
veja bem aquilo que come
Marcantonio, Melancolia 27 – Consensus Omnium Sapientium Técnica Mista 141×81 cm Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/
se engolir um caroço, sufoca:
o ar pára, o sangue corre cada vez mais rápido
os olhos esbugalham-se de dor
os pulmões exigem,
o ar continua parado
se engolir dois caroços, sufoca:
o ar pára, o sangue dilata-se nas veias
o peito não contém um só coração
os pulmões explodem
o ar continua parado
se engolir em seco:
o ar pára, o sangue corre até às pedras
o peito explode em surdina
os pulmões mirram sobre as costelas
o ar começa a circular
quando engolir, recorde:
veja bem aquilo que come
Marcantonio, Melancolia 27 – Consensus Omnium Sapientium Técnica Mista 141×81 cm Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Pedradas XL
Egoísmo
saem pequenas gotas pelos poros
ficam imóveis sobre a pele seca de sal
numa sintonia perfeita, esféricas
rolam sobre os sulcos dos dias, das noites, das estações
afogam as suplicas silenciosas das noites defeituosas
guardamos em frascos de vidro
os braços imóveis, as mãos arrancadas
amanhã quebramos os dedos, esgaçamos as unhas
e mordemos os corações estragados
Marcantonio, Melancolia 30 – Vertebral Técnica Mista 158×80 cm Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/
saem pequenas gotas pelos poros
ficam imóveis sobre a pele seca de sal
numa sintonia perfeita, esféricas
rolam sobre os sulcos dos dias, das noites, das estações
afogam as suplicas silenciosas das noites defeituosas
guardamos em frascos de vidro
os braços imóveis, as mãos arrancadas
amanhã quebramos os dedos, esgaçamos as unhas
e mordemos os corações estragados
Marcantonio, Melancolia 30 – Vertebral Técnica Mista 158×80 cm Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/
Polaroid 10
Forjado
no armário: de ferro, fundido, branco, enferrujado, com três pés assentes num velho tapete, gasto
debaixo do velho espelho: de arestas partidas, oxidadas, reflexo fosco da imagem que não existe
no armário de ferro, sobre o tampo retorcido: o veneno
no espelho torto, na parede descascada: o antídoto
no armário: de ferro, fundido, branco, enferrujado, com três pés assentes num velho tapete, gasto
debaixo do velho espelho: de arestas partidas, oxidadas, reflexo fosco da imagem que não existe
no armário de ferro, sobre o tampo retorcido: o veneno
no espelho torto, na parede descascada: o antídoto
"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller
XVII
estava cansada disso: sempre frio, frio, dias frios, anos gelados. não encontrava casacos suficientes que tornassem as horas menos isso, frias. os pássaros abriam as asas diante de mim e as penas estavam congeladas, tentava aquecê-los e eram pássaros, sem peito, sem bico, nadas.
estou cansada disto: sempre frio, frio, estações paradas no gelo árctico. quando tiro a roupa, demoro minutos, horas, tiro a roupa, tiro, tiro e tiro. não encontro nada a não ser um pequeno cristal de gelo colado no peito. continuo a tirar a roupa e a ter frio.
estava cansada disso: sempre frio, frio, dias frios, anos gelados. não encontrava casacos suficientes que tornassem as horas menos isso, frias. os pássaros abriam as asas diante de mim e as penas estavam congeladas, tentava aquecê-los e eram pássaros, sem peito, sem bico, nadas.
estou cansada disto: sempre frio, frio, estações paradas no gelo árctico. quando tiro a roupa, demoro minutos, horas, tiro a roupa, tiro, tiro e tiro. não encontro nada a não ser um pequeno cristal de gelo colado no peito. continuo a tirar a roupa e a ter frio.
Manifesto LXXXI
Dissecação
escorre o musgo pelas fendas do granito, quase
que posso jurar que te vi respirar
finco as pernas numa poça de lama, de certeza
que te vi respirar, quase
guardo os utensílios de alumínio
acreditei tempo demais
que sobre o peito bateria um coração
fecho os vidrinhos de desinfectante
imaginei em silêncio
a areia que saia dentro das unhas
Marcantonio, Melancolia 37 Técnica Mista 80×146 cm Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/
escorre o musgo pelas fendas do granito, quase
que posso jurar que te vi respirar
finco as pernas numa poça de lama, de certeza
que te vi respirar, quase
guardo os utensílios de alumínio
acreditei tempo demais
que sobre o peito bateria um coração
fecho os vidrinhos de desinfectante
imaginei em silêncio
a areia que saia dentro das unhas
Marcantonio, Melancolia 37 Técnica Mista 80×146 cm Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
os seis sentidos
Fotografia Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/
I. olfacto
amanhã quando acordares, não
te esqueças de fechar os olhos
guarda o nosso cheiro no vidro da mesinha.
II. audição
martelo, bigorna, tímpano.
a nova retina do ser
nasce do som do teu bater de asas.
III. paladar
amanhã, banha-te na água das
nossas lágrimas. arrumadas na prateleira
estão as línguas. em sal.
IV. tacto
seda ou areia,
só com o teu corpo
se escreve a palavra “pele”.
V. visão
amanhã quando te deitares
pousa os olhos sobre os destroços
em que nos guardamos.
VI. intuição
mesmo não sabendo se existes,
sinto.
e se não basta?…
Laura Alberto e Jorge Pimenta
Etiquetas:
Club Silencio,
Jorge Pimenta e Laura Alberto
Sur-Realidades
Fotografia de Berenika
– Tu, quando estás comigo és surrealista.
– Surrealista, simbolista, decadentista… Chovem os sufixos gramaticais, mas esconde-se a matriz semântica.
– Tu, quando estás comigo és surrealista, até porque o papel é permeável a toda a chuva.
– Continuo sem gabardina para resistir à enxurrada, sabes? Até porque as etiquetas sempre me confundiram e a poesia é impermeável. Tu e o teu surrealismo ajudam a entender (me)?...
– Deixa lá, a pele é permeável a toda a chuva. Afinal, o que é o sangue sem a água, a água sem o sangue, o real sem o surreal?
– Às vezes pergunto-me sobre o que está mais próximo de nós: o real ou a sua caricatura – pomposamente etiquetada de surreal? Ei, passas-me o espelho? Não consigo respirar…
– Não encontro o interruptor. [Cegueira total].
– E a pele? A impermeável pele, terá desaprendido de tactear, de alumiar?...
– Deixa-a de molho. Quem sabe encontra os ossos que vestir. Olha, parti o espelho. Crás!
– Oh, e agora? Preciso do vidro. Sabes, é que eu temo a água e o seu reflexo; foi-me dito que derrete os olhos. Já não sei o que é pior: asfixiar ou deixar de ver…
– Destapa o frasco. Bebe o veneno.
– A cortina corre, a luz apaga-se, os aplausos escondem-se no interior das algibeiras. A humilhação é o granizo que lava, hoje, o palco. –
– Queria oferecer-te o que não tenho – o lobo e o cordeiro cabem na mesma veia. Achas que o ar que nos falta é o segredo que os junta?
Toma. Gostas?
É a panela mais silenciosa que encontrei.
– Deixa-me simplesmente fic-ar.
– E a nossa vida enche-se com tudo aquilo que não nos cabe –
Laura Alberto e Jorge Pimenta
Mão Morta-Tiago Capitão
Polaroid 9
Ano Novo
hoje cortei um braço, pela simples razão de o cortar
ontem arranquei uma perna, pelo simples motivo de a arrancar
amanhã procuro como cauterizar os golpes de azar
enquanto corre o silêncio à volta
entre lama, frio, gelo
desenham-se círculos na areia movediça
hoje cortei um braço, pela simples razão de o cortar
ontem arranquei uma perna, pelo simples motivo de a arrancar
amanhã procuro como cauterizar os golpes de azar
enquanto corre o silêncio à volta
entre lama, frio, gelo
desenham-se círculos na areia movediça
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