«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Manifesto LXXX

Quando eu morrer, se morrer

quando eu morrer, se morrer
não chorem por mim, se chorarem
conto vos a história do futuro:

a terra é sempre húmida e não se vêem os vermes
as tábuas apodrecem ao esquecimento
a carne seca sobre os ossos, sem odor
os ossos quebram perante o olhar dos vivos, quando quebrarem
fica o cabelo, uma coifa imunda
saem os dentes sobre os lábios que se rasgam, desaparecem
pintam-se os olhos de chumbo

quando eu morrer, se morrer
não chorem por mim, se chorarem
lembro vos a história do presente:

[tudo de tudo, de todos, dos outros, de mim de ti, de ti em mim, sem mim, sem ti, tudo de nada de tudo, sem tudo, com nada]

quando eu morrer, se morrer
se chorarem, não chorem por mim

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XVI
é assim: range o soalho, gritam as paredes. voltar vezes sem conta lá: até que um dia, não sabes mais o caminho, até que um dia não sabes quem és.
é assim: os móveis apodreceram lentamente: as portas do armário vão caindo por terra, uma a uma, sem aviso. romperam-se as cortinas sobre vidros que escorrem plácidos.
é assim: livros fechados, páginas amareladas, caixas, caixinhas com folhas, folhinhas, papéis, papeizinhos.
é assim: fotografias onde não te reconheces, nomes que nunca te chamaram e os tacos levantam-se sobre os teus pés.
é assim: levas nos pulmões o cheiro a humidade, a urina, a doença, levas nas mãos caderninhos, que ninguém leu, que tu já te esqueceste de quem escreveu
é assim: range o soalho, gritam as paredes. voltar vezes sem conta lá: até que um dia, não sabes mais o caminho, até que um dia não sabes quem és.

Jorge Molder, S/título (da série “Zerlina”),1988

Polaroid 8

Pangea

chorei todo um oceano,
até que o sal me tomou o olhar
e as algas me prenderam os braços,
para ver que nunca fomos um só continente

Fotografia de Man Ray

Pedradas XXXIX

Alô, alô, daqui falo eu:
aquela que vem pelas tábuas
marca as rugas nos dias que escorrem
violentos pela dobra do queixo

Alô, alô, daqui falo eu:
do gelo sem odor
dos quartos abandonados mergulhados em bafio
das estações que passam

Alô, alô, daqui falo eu:
hei-de sair do teu peito
pintar o teu rosto de mercúrio
até que os teus dentes sorriam entre a terra

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XV
de cada vez que venho aqui: não encontro o teu corpo: acaso terá ficado guardado em altas prateleiras, num qualquer quarto secreto?
de todas as vezes que venho aqui: não sinto o teu odor: provavelmente dissolveu-se entre o mofo que nos cobre.
sempre que teimo vir aqui: não sigo os teus olhos: apagados estão já num beco qualquer.
da última vez que virei aqui: dançarei sozinha de olhos bem abertos: a dormir.


Requiem For A Dream - Full Theme Song

Manifesto LXVII

Rafeiro

amanhã corremos entre prados sem fim
nas minhas quatro patas sinto a terra que escorre pelos dias
amanhã voamos entre rolos de azul
nos teus dois pés firmam-se os dias quentes, frios

amanhã deitamo-nos sobre a sombra do sol
enquanto as estações passam:
ruidosas, silenciosas

depois de amanhã ardemos
mordendo a língua, sem ar, sem peito

Polaroid 7

Quarto alugado

fecho os olhos cada vez que te sinto, és
uma cava funda num colchão coberto de pó

cerro os lábios sempre que o teu sabor me invade, deixaste
um reflexo apagado num espelho partido

cerra-se o peito quando lá longe surgem ecos,
a história finda numa banheira cheia de água


Fotografia de Jorge Molder

Manifesto LXVII

Quem consegue voar daqui?

deixa-me assim, sem saber a cor
dos teus olhos
deixa-me assim, entregue à cegueira
do teu corpo
deixa-me assim, esquecida do toque
da pele que te veste

ficamos assim, mergulhados em silêncio
na solidão do quarto
ficamos assim, à espera do veneno
para o qual desconhecemos o antídoto
ficamos assim, distantes em pensamentos
assim, tu e eu sem ti, tu sem mim e nós sem nós


Sapatos – Vincent Van Gogh

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Polaroid 6

Via rápida

deveria ter pintado a tela que te esqueceste
areia ventando, sol chovendo, mar ardendo
preferi desenhar uma linha

deveria ter plantado a semente que perdeste
céu penetra as entranhas da terra
preferi sentir fome

[anda embora,
a luz reflecte-se na água sobre o asfalto]

deveria ter coberto o teu corpo
com um lençol branco, desinfectado
desinfectada de ti


Um dia cinzento, Jorge Molder

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XIV
não se consegue escrever o poema: ontem não volta a ser hoje, as linhas foram traçadas a lápis.
não se consegue ver o dia: a noite cerca as criaturas, tu e eu, descalços sobre o granito. caminho, caminhas, caminhamos em direcções opostas, onde outrora bebíamos da água da chuva, hoje, amanhã secamos nossas gargantas no pó da distância.
não, não se consegue escrever o poema: daquilo que não fomos. um punhal descansa sobre a mesa vazia, e não, não seremos.

Polaroid 5

Acidente na berma da estrada

na berma da estrada, entre a linha de pó, uma
carcaça de um gato, olhos estupefactos, imóveis. Parado
está já o relógio


na berma da estrada, entre a linha do tempo, uma
carcaça de um gato, rodeada por uma poça do seu sangue: espesso, seco, negro. Amontoado
de ossos rasgam a carne, apanham de surpresa os músculos inertes

na berma da estrada, algures entre um dia e outro dia: o dia
da sua morte, na berma de estrada

passamos rápido pela língua de asfalto quente
na berma da estrada somos o acidente


O pequeno mundo, fotografia de Jorge Molder

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Polaroid 4

Letras 2 – desconstruir

os gatos sorrateiros à cata de pardais. Relembra-me
a letra a
os gatos escondidos nos becos da Ribeira. De que é feita
a letra d
os gatos roçando-se nas pernas das varinas. Conta-me
a história da letra e
os gatos surripiando pequenas sardinhas no mercado do Bolhão. Canta-me
a letra u
os gatos que têm mais uma vida. Rouba-me
a letra s
os gatos que caem sempre de pé. E eu esqueci
o que te queria dizer

Polaroid 3

Letras 1 - construir

os gatos que se equilibram em muros de pedra. Ensina-me
a letra a
os gatos que esticam as garras. Mostra-me
a letra m
os gatos que lambem o pêlo. Fala-me
da letra m
os gatos que dormem de dia. Desenha-me
a letra o
os gatos que são sempre pardos. Apanha-me
a letra r
os gatos que têm sete vidas. E eu não sei
o que diga

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Polaroid 2

Desmembramento

de todas as vezes corri, sem ar e gosto de ti
de todas as vezes corri, sem terra e gosto de ti
de todas as vezes corri, sem pedras e gosto de ti

de todas as vezes corri, com vento e gosto de ti
de todas as vezes corri, com frio e gosto de ti
de todas as vezes corri, com pele e gosto de ti

de todas as vezes que corri. Parei
não te vejo aqui


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XIII
o que será que ela fazia? [Dou corda ao relógio, senão ele pára.] era chegada a hora de dormir, a sesta da tarde, no quarto virado para o largo. no outro quarto, voltado para o quintal, de manhã, era hora de ir para o quente dos lençóis, quando chegava da minha outra noite. [Prometes que não me deixas aqui sozinha?] fechar os olhos e resistir: ao sono, ao cansaço, à obrigação. deixar ir: dormir, sonhar a dormir, acordar, tarde sem horas. [Tinha que vir trabalhar, mas sei que ficaste bem.] silêncio: o barulho pesado do engenho do velho despertador. Trim. e agora, quem vai dar corda?

Polaroid 1

Desabamento de uma montanha

nossos corpos nus, suados, transpirados. Cansados
da brancura dos lençóis.
assim silenciosos, as mãos tocando-se. Sempre distantes
são os meus olhos nos teus olhos os meus olhos. Os lábios tocam-se
os meus nos teus os teus nos meus. Dentro
o meu corpo, dentro de ti dentro de mim dentro de nós. São
os dias: e os meus olhos nunca viram os teus olhos nos meus e
tu em mim em ti em nós

Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XII
naquele dia o tempo tinha parado: olhava pelos vidros sujos: tudo imóvel, suspenso. teria realmente o tempo parado? continuava a olhar: tudo brando. olhar à volta: sentir o silêncio. apenas uma formiga passeia no beiral do aquecedor. todas as partículas repousam suspensas no ar. todas as nuvens perderam os seus braços.
será que já acordei: que já tomei banho: que já saí de casa?
será que ainda estou a dormir: fingindo que estou acordada, dormindo?
naquele dia o tempo tinha parado: os pêndulos dos relógios congelaram: o sol queimava: o frio queimava.
do vidro via a mesma imagem: absoluto repouso, ruído silencioso e vento. o vento continua a correr: seco, húmido.
naquele dia o tempo tinha parado: alguém terá dado corda às flores: e tudo seguiu.

Manifesto LXVI

Panela ou Então é isto?

escorre o tempo pesado
entre corredores sinuosos
e a náusea do odor esquecido

[quem sois vós
parando a rotação dos dias?]

sobre lençóis rasgados
corpos cansados desistem
tropeçam em nuvens de éter

[quem sois vós
parando a translação das noites?]

um baloiço vazio
uma nuvem parada
um aguaceiro suspenso

[quem sois vós
brincando com os mortais]



Um dia cinzento, Jorge Molder

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Pedradas XXXVIII

História

passado:
pinos de plástico colorido
desenham fábulas em esferovite
joelhos dobrados, pernas cruzadas
a vida entra pela porta da cozinha

presente:
corredores de mármore branco
vazios de ti
vento dobrando os cantos do quarto
mantas de humidade velando os dias lentos

futuro:
a morte sai-nos do peito,
silenciosamente




Um dia cinzento, Jorge Molder

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Pedradas XXXVII

Operação

tiro o cabelo e não estou careca
tiro os dentes e não sou desdentada
tiro os dedos e tenho mãos
tiro os braços e consigo abraçar
tiro os olhos e não sou cega
tiro as orelhas e não sou surda
tiro a boca e sei falar

tiro o peito e não encontro o coração

Um dia cinzento, Jorge Molder

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

XI
eu que acreditava que o vento: era vento.
eu que acreditava que a chuvar: era chuva.
eu que acreditava que os trovões: eram trovões.
eu que brincava: nas escadas para o quintal.
eu que sorria: sorrindo.
eu que tinha medo: do tempo
eu que queria: ficar aí.
eu que nunca acreditei: que me morrerias.

Manifesto LXVI

Porto

uma mão cheia de nada
sempre que a ti regresso
encho os pulmões com o teu granito
vejo o vento na esfera cinzenta
abraço os que esperam

um mão cheia de tudo
sempre que de ti saio
trago o fumo no peito
bebo os pássaros da terra
carrego o peso do teu existir

sempre que em ti penso
tropeço na saudade

Fotografia de Laura Alberto

Hospital de S. João, 8 de Dezembro de 2010

mil cavalos voam lá fora.
alguém permitiu que os abetos corram.
nascem flores dentro do solo.

teus olhos pararam
abertos sobre as órbitas

cortaram os ramos sobejantes,
amarraram os que restam
dentro de brancos lençóis desinfectados

teus olhos ouvem
piscam tocados pelo ar quente

continua o vento lá fora
destemido
seguem-se as folhas ordeiramente

teus olhos minguaram
simplesmente se esqueceram

Um dia cinzento, Jorge Molder

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Poema para uma possível resposta

o frio, sim o frio
o vento, a sua voz rouca
uma folha amarela que cai: é arrastada para uma qualquer sarjeta, numa qualquer cidade
um pedaço sem forma, de um rasgar do papel
a tempestade, no mar aqui tão perto
as línguas de areia que se desenham na esfera,
uma pedra de granito que rola
um risco na terra que separa
o tempo que passou
o tempo que falta
uma gota de água que desaparece
um beijo que se guarda

[Para a Ana Costa, sempre Graciosa, tu sabes a pergunta]

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

X
puxamos a gola do casaco para cima: está frio, muito. parece que ultimamente é só isto: frio, mesmo não estando frio. cansados. arrastamos os corpos pelos corredores. vento. debaixo do pesado casacão: o peito, o coração. o coração bate porque assim tem que ser e não porque o quer fazer.
bate: porque um dia amou, porque um dia desejou, porque um dia viu.
frio: mesmo assim dobramos as ruas. observamos as montras. bebemos a aragem que nos gela o estômago. do outro lado: alguém nos vê, sorri de volta, abre os braços. deste lado: abrimos o casaco, tiramos as mãos dos bolsos, descolamos os lábios.
engano: só o frio continua.

Man Ray, O Enigma de Isidore Ducasse, 1920

Manifesto LXV

Enquanto o tambor bate

era:
uma réstia de espuma
flutuando no sal do oceano,
naquela tarde fria
alguém queria manchá-la

ficou:
um rochedo vazio
dilacerado pelas vagas,
durante aquele pôr-do-sol
alguém o teimou esquecer

era:
uma pena leve
um pedaço de asa
uma prega na pele
um osso quebrado

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

IX
andar de baloiço. adorava andar de baloiço: mais rápido, mais rápido. tens que dar lanço com as pernas. não sei bem como é que isso se faz. vá mais rápido, rápido. fechar os olhos: sentir o mundo preso na tábua. abrir os olhos para ver: o céu azul, as nuvens a correrem cada vez mais rápido e rápido. abrir e fechar os olhos. ganhar coragem e largar as mãos. todo o corpo, o esqueleto, preso a uma tábua. nunca: cair, sangrar dos joelhos. lembro-me de minha mãe, do meu pai. pés assentes na areia. vá mais rápido. o som ia e vinha. célere. a Terra é finalmente redonda, ao olhar dos meus olhos fechados. não parar, nunca: enjoo, rápido.
adorava andar de baloiço. ainda hoje.

A view from a hotel window, looking out at Butte, Montana. The Americans, Robert Frank, 1956

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Rasganço


rasgar
toda esta pele para deixar sair o grito
o vazio que se liberta
corrompendo o ar circundante

estilhaçar
os ossos empobrecidos, timidamente cobertos
por toda a carne massacrada
no frio das noites

sangrar
todo esse pus fétido,
conspurcar as pedras
correndo para a sarjeta

não ser este corpo
ser aquele outro, corpo

Manifesto LXIV

Negar

não:
meus braços já não podem
agarrar essa tua figura
fugiu entre as esquinas
desabou por entre escombros e lixo

não:
meus lábios já não desejam
beijar a tua boca
apodreceu sobre a chuva
mirrando sobre a terra

não:
meus olhos não te suportam
trazes um cheiro fétido
descoberto entre as sombras da noite
pintado outrora de azul

não:
minhas mãos não te querem agarrar
sobre as asas do tempo
és brasa apagada
ponto final cinzento


Joy Division-Disorder

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

VIII
fazer a inesperada visita. percorrer caminhos estreitos. ameaça de neve. não uma neve tímida, uma neve cinzenta. vasculhar com a pá os detritos. esquecidos no canto. o suspiro que se solta liberta fumo. a neve continua a cair. o crepúsculo desenha-se no fim do carreiro. lápides: partidas, esquecidas, caladas. visitantes fortuitos. continuar: a visita, a procura, a neve.
continua o frio. as tumbas desistem e deixam-se ficar.
saio: pela porta que não reconheço. se não morri até agora. não morro mais.


Massive Attack - Butterfly Caught