«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

terça-feira, 30 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

VI
esperar o tempo que passa. esperar. deitar a cabeça sobre a almofada. acordar. agitar o membros cansados. à espera e ficar: ficar assim imóvel. viajar pelos mapas. perder-se entre as fotografias: memórias de um passado fosco.
VII
quanto tempo tem o tempo? o mesmo tempo que o tempo ainda tem? e é isso. tempos. não: não preciso fingir que está. as pedras foram gastas. debaixo dos pés cansados. pensando numa figura.
e quanto tempo tem o tempo? para descobrir: que hoje já não nos resta tempo.

Pedradas XXXVI

Estilhaço

durante quanto tempo
corre a água sobre o peito
[será o mesmo tempo
em que te abrigas sobre as asas]

cravado na carne
o espinho do tempo
que não chegou a tempo
e sangram os ossos

quanto é o frio
que se aloja na linha da gengiva
[será o mesmo frio
em que te escondes na noite]

abre-se a boca
berra-se o hálito
aos três cantos
de um canto



The Cinematic Orchestra - Dawn
(deixo ficar esta musica especialmente para a Andy)

domingo, 28 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

V
trazer-te bem aqui: dentro. o peito: isolado, frio, sozinho e tu. trazer-te bem aqui: iluminando. fragas graníticas: ecoam o teu nome. trazer-te bem aqui: radiando. calor que queima a entranha. trazer-te bem aqui: quase o principio e o fim. trazer-te bem aqui: tudo foi só: uma ilusão.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

IV
que miragem esta. cem anos passados no deserto. perdidos.
outros tantos na aldeia. achados.
antes de te encontrar. sonhava-te.
o encontro. aprender a dizer adeus. beber o veneno dos braços partidos.
a despedida. matar a figura. esquecer a fórmula.
Pausa.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

III
sabia enquanto o tempo escorria. por entre a cidade moribunda procurava: o rosto que me sorrisse de volta. pernas cansadas arrastando os pés pelos paralelos gastos. eu sabia. mesmo antes de te conhecer. teu corpo nu colado ao meu entre as pedras da cidade. sentia o hálito quente de um beijo: perdido numa tarde de verão. sabia que o tempo passaria: tu. tu uma ténue figura. sei-o: agora.

Tendinites III

trago um facho a arder na mão intensamente
sinto-me estrela caída em terra escura
sobem rolos de pó ao céu cinzento
enquanto aqui se espera
que movimento súbito este de luz
que nos devolve ao céu em desvario

deixa-me tocar-te uma vez,
só mais uma vez
fazer do fumo um toque em tua pele

[agora o que será de nós
outrora lambemos o fruto
entre as sombras da alvorada]

ter-te é ser estrela e escuridão
ao mesmo tempo
e agarrar as horas sem ter tempo

[escorre por fim a água
que lava foi em nós, cansados]

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

terça-feira, 23 de novembro de 2010

"O coração é um vasto cemitério"-Heiner Muller

II
sentir a água a escaldar: agulhas que percorrem o corpo. rolos de vapor sobem: entre o mármore branco. percorrer o corpo com mãos gastas pela memória. fazer de conta que não é nada. o tempo há-de passar: mas não passa. mergulhar a cabeça dentro de água: uma vez: outra vez: outras vezes. a roupa limpa aguarda que a vista. esperar que o dia passe: que os dias passem, vagarosos como só eles. sorrir às pedras que se passam, sentir que dentro só há o imenso: vazio. o tempo há-de passar: consumido pelas brasas: ardendo. o frio cercando. há-de passar, mas não passa. destrói o peito. cega os olhos abertos de medo, nunca passa.

Tendinites II

o terreno precisa de um adubo breve
e o campo da secura uma saída
se o sol viesse matreiro e de repente
pregasse ao mundo uma partida

fossem teus lábios uma gota de água
e morreria com sede
fosse o teu corpo a bruma
perdida na noite
e o orvalho penetrasse a terra até ao âmago

disséssemos então palavras no vento
rondando as montanhas sagradas

Laura Alberto / João Miguel Ferreira

“o coração é um vasto cemitério” – Heiner Muller

I
seguir o alcatrão com passos decididos. dentro é o medo que impera. o sorriso que se desenha nos lábios é frio: e tu estás longe. aqui está frio, muito frio. o olhar perdeu-se: o olho direito, o olho esquerdo olham em viés para a serra que se ergue ao fundo. ao fundo a estrada e nada. bate silencioso o coração. fechado sobre o peito enegrecido: a pergunta: pausa. afinal basta abrir os braços: agarrar o gelo. entre a corrida e o barulho dissolvido nos gritos: o que resta é o silêncio.

Fotografia de Laura Alberto

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Estrela

ainda ontem acordei
deitada sobre o teu peito nu
dedos teimosos

por trás das cortinas,
a alvorada
e nós aqui, deitados

ainda ontem acordei
na escuridão da tua respiração
bebendo do teu hálito fugidio

em redor, cercando:
o frio
e a pele engelhada de medo

ainda ontem adormeci

Marcantonio, Melancolia 17,Técnica Mista, 153×79 cm, Rio de Janeiro, 2006

Pedradas XXXIV

Dor

um dia
com a fria lamina de aço
hei-de cortar este peito
retalhar a carne que cobre os ossos

um dia
com estes finos dedos
de gelo queimante
recolherei os órgãos apodrecidos

um dia
hei-de acordar só,
sem ti
nem que morra a fazê-lo


Depeche Mode - A Pain That I'm Used To

domingo, 21 de novembro de 2010

Pedradas XXXV

Parede

estou cansada
desta cal branca
rasgando o céu

um vómito
sobe à boca,
do pão que não comi

ela continua
branca
na sua altivez

todo o sangue,
correndo entre a carne,
à espera

no silêncio, na noite, na geada, na solidão, no primórdio, no final

continua branca, nauseabunda
saem dos bolsos os dedos de carvão,
do peito, a lança que a destruirá

Manifesto LXIII

O retrato

ainda não sei bem como,
mas acabei por descobrir
que por trás desses lábios, gaguejas

terá sido o frio do quarto
o entoar do relógio, distante
que te desenhou essa ruga?

ainda não sei bem porquê
mas os teus olhos trouxeram-me
os dedos que não se vislumbram

terá sido o silêncio do papel,
sobre a humidade que escorre
que apagou a tua figura?

ainda não percebi bem o motivo:
porque as fotografias se guardam
sobre a memória de um beijo

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Praesens III

Ficamos:
Gelados,
Nos nossos lares,
Sangrando,
Silenciosamente,
Lambendo as feridas,
Gritando ao canto.

Acabamos:
Prisioneiros.
Longe.


TINDERSTICKS LETS PRETEND CURTAINS ALBUM

A minha cidade

naquele dia frio
em que a vi
soube o que se tinha passado

a chuva corria
rumo às sarjetas
levando o sangue

todo, todo o sangue
e era, e é
tanto
todo este sangue

o vento fugia
entre o frio granito
jocoso, o negro

secos os olhos
tinham-se lhe fugido
a água, o sal

Fotografia de William Greiner, "green wall with hole, bogalusa, LA", 1993

Manifesto LXII

Nem mais um dia

nenhum dia passa sereno
enquanto pousamos sobre a língua cálida
desenhando com dedos tortos
o trilho sobre o ar

nenhum dia se esquece
quando frio gela o coração
parando o presente
suspenso em abismos de granito

nenhum dia se vive
assim
perto da linha areia


Fotografia de Jorge Molder

Aranhão

Nem todas as crónicas são filantropas, interventivas, opiniosas. Esta é sobre um senhor que em tempos habitou o sótão de uma casa, no lugar Largo Heróis da Pátria. A mesma casa onde o meu tio, religiosamente, dava corda ao relógio, subindo para as cadeiras estofadas com o grosso veludo de ramagens verdes garrafa.
Enquanto o meu tio dava corda ao relógio, eu fugia pelas escadas até ao quintal, com pouco mais de dez metros quadrados. Naquela altura em que tudo é, excessivamente grande ou pequeno. Para mim o quintal albergava todas as dimensões do Universo.
A minha tia lá andava atrás de mim, com a velha tigela de plástico, vermelho, cheia dos restos, que não eram bem restos e sim todo o meu almoço daquele dia. Entretinha-me a fugir, naqueles escassos metros quadrados, para parar quando ouvia falar no Aranhão. Então era subir as mesmas escadas, entrar pela porta escancarada da cozinha e esperar.
Entre uma colherada e mais outra, procurava o Senhor Aranhão, pela casa, na clarabóia do sótão. Possuía a minha tia a mestria de sempre encontrar uma verosímil desculpa, um afazer para o Aranhão.
Às terças-feiras saiamos para ir à feira, perdia-me entre as arrufadas e na esperança que quando regressasse desse de caras com o Aranhão, vestido de fato e laço preto, com duas das patas servindo de pés e as restantes de mãos. E mais uma evasiva da minha tia.
Comecei por subir ao sótão, primeiro com a minha tia, porque aquelas escadas de madeira feitas pelo meu tio, poderiam não ser seguras. Depois já subia sozinha, com inúmeras recomendações, cuidado com os tubos da água, os cabos da electricidade e o vitral, cuidado, não caias cá abaixo.
Passei tardes inteiras no sótão à procura do Aranhão, pintei o velho armário que lá estava à espera do fim, arranjei um tapete e duas cadeiras. Enquanto olhava pelas aberturas das telhas para o largo, controlava as entradas na barbearia, as saídas da mercearia e os velhos no tasco. Só não controlava o tal do Senhor Aranhão.
Quando cai nas escadas do quintal e parti os meus dentes, a presença do Aranhão parou, minha tia, com medo, deixou de falar nele. E eu andava triste, como seria possível que ele não me tivesse vindo visitar? Quando minha tia descobriu, desvendou que ele estava muito ocupado a tratar dos seus filhos.
Voltaria a passar os meus dias no sótão, à espera.
Mas houve um dia que a minha tia se vestiu integralmente de preto e muitos outros tantos se passaram até que um dia eu lhe lembrasse do aranhão. Já estava cansada, apenas olhou distante e respondeu que tinha sido a forma de me meter medo. Sorri, disse-lhe que tinha tido o efeito contrário.
É, há crónicas que são crónicas e outras que são memórias dos nossos sonhos.



Tio Alberto, Tia Laura, Menina do Aranhão

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Pedradas XXXIII

Axila

gigante envelhecido,
de espinha quebrada
lambendo os pelos eriçados
navegando no sangue negro

verme viscoso,
com o sorriso sem dentes,
fecha as asas remendas
ninguém nelas se abriga

[enquanto o rios correrem
e enquanto pararem,
desfazendo as grades
enchendo o vazio

são os todos que te olvidam,
só]

Poema podendo servir de posfácio

Pedradas XXXII

Virilha

triste condenado,
com a unha amarela de gigante
raspa a crosta seca
para libertar o líquido fétido
correndo entre estranhos capilares

mirrado ser
de olhos tombando,
bebe o cheiro que se liberta
do rio de verde pus
jorrando do peito corcovado

[ao fim e ao cabo
não és assim tão grande
pois não?]


Mão Morta - Müller no Hotel Hessischer Hof (1997)

Manifestos LXXI

Coragem

sabes, isto deveria ser
um dialogo,
mas não o é

atrás das grades
onde sempre te escondes
não há imagem do meu corpo

sabes, agora deveria existir
uma resposta,
mas há apenas o silêncio

no fundo da lura
repousa aquele que foi
o nosso sonho

sabes, agora trocar-se-ia
um beijo,
mas perdeu-se nas mãos frias

mergulhada numa qualquer poça
de lama fétida,
jaz a história escrita

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Manifestos LXX

Todo

toda eu sou vento:
esquecido
afagando os fios do tempo
distante

toda eu sou chuva:
adormecida
bebida pela boca grotesca
do gigante

toda eu sou onda:
desfeita
na linha de areia que termina
aos teus pés

toda eu sou frio:
perdido
na algibeira de umas calças
velhas

Desenho de Almada Negreiros

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Manifestos LXIX

Maldita

maldita esta tosse,
maldita
não me larga na noite
fria, silenciosa

ah, maldita sejas tu
tosse,
assomando do canto da sala
ruidosa, viscosa

tosse,
tosse penosa
esventrando o peito,
contagiosa

maldita, maldita
sejas tu
ó tosse
ai ai ai ai


Mário Viegas - Os aissss!

Morreste-me

morreste-me
sem nunca termos nascido
no caracol das nossas vidas

fugiste-me
enquanto corria sem ar
na terra que deitavas fora

perdeste-me
nos braços que se quedaram
perante a urina que caia

queimaste-me
no frio que deitaste
do beijo dissolvido no tempo

morreste-me
morreste-me
morreste-me


"Poema" - de Rodrigo Leão, Rogério Samora e Gabriel Gomes

Pedradas XXXI

Despedida

vá, guarda-o bem
nessa caixinha de balsa,
escondido no fundo
não vá partir-se em mil pedaços

vá, esconde-o bem
na dobra do corredor
por onde deambulas
todos os dias

vá, tapa-o bem
sufocado pela manta
que trazes pousada sobre as costas
arqueadas ao teu próprio peso

vá, vê-o bem
enquanto fechas os olhos
e disfarças o pó
que mata


Há uma hora, Mário Cesariny

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Manifesto LXVIII

Não me pareces assim tão bem

cansei
e a língua secou
de tanto lamber esse veneno
escorrendo aos poucos
pelo tronco empedernido

enjoei
e o estômago revirei
à procura do alimento
jogado à podridão
nos teus braços imóveis

beberei
o fim das tuas mãos
apertando o punhal
que nos haveria de libertar
aos dois, dos dois


DEAD COMBO "Viuva Negra"

Pedradas XXX

Quando

quando cair
nesse abismo trilhado,
alguém me há-de erguer

quando sangrar
as entranhas putrefactas,
alguém as há-de limpar

quando os dentes estalarem
sobre as gengivas
alguém sorrirá

quando as pernas se dobrarem
quando os tendões se carcomerem
quando a espalda vergar
quando os olhos se apagarem
quando a boca correr
quando o suor entrar na pele

tiro a negra touca de penas

sábado, 6 de novembro de 2010

três escarros

– olha aquele coração que ali vai.
– sabes, passei a odiar esses gajos, caretas previsíveis, sempre com bocejos nas palavras. uma vez tentei agarrar um deles, gritar-lhe para lhe suster o passo. o gajo olhou com desdém e prosseguiu. Não tem noção da grandeza e que só por ela se pode afastar os mortos. filho-da-puta!
– acorda, não estarás a sonhar? espera, não o digas já, acabaste de adormecer. não é o sonho que aparece, são só dentes podres que te sorriem.
acorda.
– já acordei. e sabes porquê? porque quanto mais perto do sonho, mais longe da utopia. e eu que sempre acreditei na leveza que escorre da im.possibilidade…

– sou o teu despertador, não te esqueças de lhe dar corda.
– sou a tua corda. de que te serve teres os ponteiros se a máquina não funciona?

– ouvi dizer que há o silêncio, nesse teu cemitério de estátuas.
– o silêncio? ... schiu.

Jorge Pimenta e Laura Alberto


einstürzende neubauten, sabrina

Manifestos


Imagem de Zbigniew Reszka
manifesto anti-figurões [e figurinhas]

há-os aos montes os figurões
[já ouviste falar dos figurinhas?]

colam-se na sola dos sapatos, mal-cheirosos
[não sabem andar descalços]

sobem pelas caleiras dos lares
espreitam nas janelas, das casas
[deitam-se no chão
à espera da respiração das rosas]

fervilham em caldeirões gastos
em sangue brando, fedendo.

[ah, druidas do fogo
já nem as rosas sabem que são rosas].

há-os aos montes os figurões
espeto-lhes o garfo, o tridente
deixá-los berrar na noite
[já ouviste falar dos figurinhas?
perderam a coluna vertebral
e passaram a viver em hortos sem luar]

felizmente a morte
escorre sempre pelo tecto.
[e aquece a terra
já com as flores desmentidas].

Jorge Pimenta e Laura Alberto




The national, afraid of everyone

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Manifesto LXVII

não sei do horizonte
ao longe desenha-se uma linha
quisera eu tocar-lhe
dobra-la sobre o peito

não sei do oceano
perto mergulho os pés
mas é secura que me sacia
a fome de querer

não sei do lugar
onde pousar a fronte
e dormir um sono
acordado

Manifesto LXVI

Uno

uma parede vertical para me deitar
um rio transparente para descansar
um par de asas para ficar
uma porta aberta para esquecer

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pedradas XXIX

Caruncho

bem me queria parecer:

que no vento escreveu-se o nome,
o teu nome

que na chuva beijaram-se os lábios,
os meus lábios

que no mar fugiram os braços
os teus braços

resta todo o bolor

Fotografia de Laura Alberto

Manifestos LXXI

Coragem

sabes, isto deveria ser
um dialogo,
mas não o é

atrás das grades
onde sempre te escondes
não há imagem do meu corpo

sabes, agora deveria existir
uma resposta,
mas há apenas o silêncio

no fundo da lura
repousa aquele que foi
o nosso sonho

sabes, agora trocar-se-ia
um beijo,
mas perdeu-se nas mãos frias

mergulhada numa qualquer poça
de lama fétida,
jaz a história escrita

Manifesto LXV

Mercúrio

escorre pesado pelas paredes,
respira-se entre as falhas,
sorve-se pelos dedos,

rumores de eternidades incertas
embalam os inocentes
em cantigas de surdina

rola e enrola
pela coifa repleta
do teu caruncho

Fotografia de Laura Alberto

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Manifesto LXIV

Nascer

tira esta pele
que apenas cobre
os ossos cansados,
sangram os joelhos
aninhados no teu sal,
todos os cortes libertam o teu odor

separa toda a carne
apodrecida entre fracos tendões
bocejando aos dias estremecidos,
cegaram-se os olhos
no beco da alma,
todo o corpo é uma nódoa

não recordo a tua face

não recordo a tua face,
cá dentro,
entre braços tombados
e lábios cerrados,
a espiral aperta-se

não recordo o teu sabor,
desço fundo
pelos degraus escorregadios,
para chegar
onde te escondes

não lembro o teu toque,
sob o chão de lodo
o bicho enrola-se sobre si
e faz de conta
que não recorda a tua face