«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Pedradas XX

Sobras

II

que se cumpram os dias, as noites,
passem os anos, águas correndo
a mesa de mármore será ocupada

limpem-se as facas,
afiem-se suas laminas enferrujadas
o bolo repousa na mesa
apodrecido pela espera
embrulhado no bolor do silêncio

com um cordel
ata-se a etiqueta
no dedo grande do pé

Pedradas XIXX

Sobras

I

o inventário imposto
sem ordem
e aqui restámos,
presos entre colunas, duas,

saíram:
palavras atiradas ao acaso,
suor exalado em quartos de hotel,
carícias rompendo no vento,

restam:
os lábios secos na névoa,
a carne mirrada debaixo da pele,
as veias vazias, ao descoberto,
os braços pendendo



Einstuerzende Neubauten - The Garden

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Pedradas XVIII

Pim. Pam. Pum.

Pim,
cada bala mata um,
mata o bicho enfermo,
sangra a criatura bizarra.

Pam,
cada bala mata um,
destrói a pele que não cobre,
estilhaça o musculo que ferve.

Pum,
cada bala mata um,
apodrece o coração cansado,
liberta o encerrado prisioneiro.

Pim, pam, pum,
cada palavra mata um.

Manifesto XLIV

Talvez

I
talvez um dia,
eu acorde na tua caverna vazia,
desenrole o pêlo e lamba a ferida,

II
talvez um dia,
o sangue seja só uma poça, só,
e as patas correias sem nó,

III
talvez um dia,
o suor deixe de escorrer pelas paredes, cinzentas
e as mãos se juntem eternamente,

IV
talvez um dia,
eu sacuda as costas
quebre os ossos,
beba a água,
enquanto se estica a espinha,

V
talvez um dia,
um dia, talvez

Manifesto XLIII

Abraço

provavelmente,
talvez um dia remoto,
os cafés fecharão,
encerrando as suas portas de vidro aos dias
que escorrem vagarosos,

depois virá o cansaço,
arrastando os pés pela calçada,
as mãos trémulas segurando sujas colheres,
e talvez nesse dia,
quando as asas se partirem e os pires se esquecerem,
a gente volte a fumar

Tom Waits & Iggy Pop - Coffee and Cigarettes

Manifesto XLII

S. Nunca

quando é que vens?
a terra acumulou-se entre as pedras,
sufocam as formigas no pó que se levanta,

recordo os sons que fogem,
nas velhas chaminés de tijolo,
e contemplo as pedras esquecidas,

quando é que vens?
abro as portadas, nem assim o ar entra,
nem assim a história cai,

tiram-se os postiços da boca,
arranjam-se os braços no armário,
os pés lembram o caminho e esquecem o passo,
do horizonte apenas um vago rabisco

e quando é que vens?
é preciso pintar a cal


Nick Cave & The Bad Seeds "Mercy Seat"

domingo, 26 de setembro de 2010

Esquecimento

Ao que parece, esqueci-me dos dias, das horas...
Tudo ficou a fluir, acabando por agarrar o inutil. Irremediavel.
Este, é dedicado aquele, que sempre encontro!


Sabedoria

eu sei amigo,
que na sala oval estão guardados
a sete chaves, os boticários e seus rótulos gastos,

que a madeira range como os dentes,
quando atravesso o estreito corredor, de paredes
revestidas de papel, povoado de desfigurados desenhos,

e eu sei amigo,
um dia não haverá fumo, na mesa vazia do café
em que nos sentamos,

que a língua de alcatrão negro, cobrirá
nossas cadeiras tombadas
sobre a erva,

eu sei amigo:
que as palavras apagam-se do papel,
riscam-se com as unhas,

que as mesmas se bebem da tinta,
esvaem-se pela boca,
fogem-nos do peito,

e ambos sabemos.

Manifesto XLI

Desafio

agora que afiaste a navalha,
deixa que a lamba sem pudor,
entre couraças e viseiras,
a pele!

enquanto guardas a cintura,
deixa que lhe sinta o sabor,
entre músculos e tendões,
o osso!

descerra o cristal fosco
do negro veneno,
entre as veias ainda corre,
o sangue!

abrem-se as coxas e a seiva que escorra,
dance-se,
o tango!

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pedradas XVII

O mapa

Ora vamos cá ver:
um pedaço de papel carcomido,
Primeiro, seguir a linha a tracejado,
convém ter a sorte,
de com a bússola descobrir o norte,
20 léguas para aí. Outras 20 léguas
de léguas para ali,
O que sobe, acaba por descer,
O que desce, bate no alicerce,
emaranhado de trilhos,
em soma, todos os passos.
O xis marca o sítio.
Sabe ler?


Fotografia de Robert Frank, From the bus, 1958

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Manifesto XL

A folha

arrastam-se os pés pesados,
sobre as tábuas apodrecidas,
aconchega-se a gola do casaco,
ao pescoço coberto de pele,

é verão na cidade,
mas a chuva escorre pela fronte,
o vento parou nas ruas,
mas destroem-se os braços,

alguém há-de vir
para varrer as folhas,
que restam

Marcantonio, Melancolia 43,Técnica Mista,85×150cm, Rio de Janeiro, 2007

Manifesto XXXIX

Uma vida qualquer

descubro que não há um livro
nas altas estantes,
vazio,
encontro os compêndios
no solo húmido,
bolorento,
passam-se páginas e páginas,
índices e capítulos,
cheias,
lê-se a cor
entranha-se o emaranhado,
caracteres,
na sala o relógio
vai cumprindo a sua obrigação,
horas,

vão sumir os músculos,
enfraquecer os tendões,
os ossos vão acabar por quebrar,
as imagens verterão sobre a pedra,
a pele cairá sobre as mãos,
quando o pó o for finalmente,
fica a história marcada,
no livro esquecido sobre a alta prateleira

Pedradas XVI

Granítica

ilusão da mão tremula,
buscando no alforge
os sonhos de pó,

para longe havia de ir,
a imagem baça
do castelo de açúcar

insistência da mão partida,
percorrendo no mapa
os trilhos

bem longe vão ficar,
os braços caquécticos
ensarilhados em suor

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Pedradas XV

Mudez

empresta-me a tua cegueira,
carregada nessa mala vazia

deixa-me esquecer as searas
onde voaram os pássaros,
esconder da memória o sal
algoz na mortalha de um beijo,

empresta-me a tua cegueira,
para que se esqueçam os braços,
agora que tens o fio da navalha
procura o espaço intercostal

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Estudo LXIX

Ciclo

tenho sempre os bolsos vazios,
rompidos pelos sonhos fumados,
sem sentido,

visto calças sem fundo,
rotas no dente da volúpia,
sem forma,

calço botas cambadas,
exibindo o dedo da solidão
sem sangue,

esvaziam-se os olhos,
pelos vastos campos
onde sempre vou caminhando,

cansou-me todo este horizonte
preguiçoso
à escuta


Fotografia de Robert Frank, Crosses on Scene of Highway Accident – U.S. 91, Idaho, 1956

Pedradas XIV

Com vossa licença

desculpe,
dá-me licença?
tenho pressa em passar.

desculpa,
peço com delicadeza,
é cansativo olhar.

peço permissão,
desculpe,
será a teimosia a falar.

com a vossa anuência,
não peço,
deixo o risco seguir.

Desculpe?

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Manifesto XXXVIII

A sina

sonha-se na noite,
envoltos na solidão,
a história de pasmar,

arregalam-se os olhos,
saltando das orbitas,
engole-se em seco,


tolos, somos todos tolos,
deixando,
doidos, somos todos doidos
disfarçando,

bebe-se o ar em golfadas,
desesperando no silêncio,
a tristeza da cor,

saca-se o punhal,
frio,
esventre-se o bicho,

doidos, somos todos doidos,
acreditando,
tolos, somos todos tolos,
escondendo


Fotografia de Ed Van Der Elsken

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Manifesto XXXVII

A lenda

ouvi dizer que no campo não há trigo,
que o vento teimoso cessou o pranto,
debaixo do luto apenas um esqueleto,
esquecido da carne que o revestiu

ouvi dizer que no campo não voam os pássaros,
que a chuva alagou o desejo,
atrás dos óculos apenas uns olhos,
baços da curva do tempo,

ouvi dizer que um dia,
perdeu-se o pente do sonho,
ouvi dizer que um dia


Fotografia de Robert Frank, Car accident—U.S. 66, between Winslow and Flagstaff, Arizona, 1956

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Manifesto XXXVI

O reflexo

Tantas vezes passei na tua rua,
Provavelmente
As mesmas que espequei no umbral da porta,

As chuvas sobre os dedos da estação,
Definitivamente
É difícil colher o dente sem braço,

Pousa o lápis,
A sair daqui,
Apenas uma queimadura


Fotografia de Ed Van Der Elsken

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pedradas XIII

Cegueira

com uma fisga,
vazo-te o olho,
de um outro lado,
ó ciclope de pés afundados no lodo,

tudo bem,
a lama é um bom tempero

Pedradas XII

Cáries

come algodão doce,
cor-de-rosa,
enrolado num espeto,
corado artificialmente,

come algodão doce,
enquanto te apodrecem as gengivas
e caem os dentes,
come algodão doce

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Pedradas XI

O dependurado

cai o sol sobre esta cidade,
ontem eram demasiado pequenas as botas,
hoje fuma-se o sonho num cigarro,
amanhã resta um cordel no bolso

Manifesto XXXIV

ficamos perdidos,
pés mergulhados em alcatrão,
olhos inebriados de luz,

fomos esquecidos,
braços dissolvidos nos silvos,
boca imóvel de medo,

perdemos o rumo,
peito quebrado pelo alumínio,
lábios mortos nas trevas,

estamos distraídos,
fingindo,
rugindo,
estamos silenciosos

Manifesto XXXIII

E tu, não sabias?

tu sabias?
não bastam as asas para voar,
todas as andorinhas fogem sempre,
tu sabias?
não chegam as penas sobre os ombros,
tudo pesa para o solo,

e tu sabias, não sabias?
não basta voar ao som das palavras,
não chega pintar as telas alvas da vida,
e tu sabias, não sabias?
essa velha gaiola de ferro
oxidou-te os passos, cercou-te os olhos,
e tu sabias, não sabias?
tudo isso e isso tudo
é simplesmente inútil.

Pedradas X

Ignorância

deixa cair a palavra
queimando o peito onde a encerras,
cola os braços ao tronco,
ramos secos à espera da queima,
fica imóvel
pasmando sobre a sombra que cai,

dorme teu sono sossegado,
enquanto secam os teus lábios

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Pedradas IX

Cup

adorava beber café,
mesmo que frio ou antes de dormir,
de tentar,
todos sabiam que tinha que beber,
o café habitual antes de…

entre uma chávena e outra,
um cigarro e outro,
numa qualquer mesa de um café
acabava sempre à espera,
de tentar…

Articulated Mannequin, Iwao Yamawaki, 1931

Pedradas VIII

Procura-se!

procura-se:
o conforto asséptico de um qualquer invólucro,
recém saídos de um banho de gelo
é tortuoso o ar que se inspira

procura-se:
esfregão abrasivo tipo palha de aço,
a pele estala perante o som que circula,
retraem-se as artérias no estranho abraço

procura-se:
um antídoto fatal em frasco de vidro,
o sangue exala o conspurcado sabor do nada,
deixa que chegue lentamente

procura-se:
desesperadamente,
o tudo dentro de um nada

David Lynch, Inland Empire, 2006