«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Manifesto XXIII

Engrenagem

trrrreeeeck, trrrreeeeck,

massa consistente,
que insiste,
óleo lubrificante,
fazendo andar

trrrreeeeck, trrrreeeeck

aço inoxidável,
que não se esquece,
porca e parafuso,
juntos eternamente,

trrrreeeeck, trrrreeeeck
trrrreeeeck, trrrreeeeck
trrrreeeeck, trrrreeeeck

quanto mais olho
menos vejo perceber

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Estudo XLIX

pausada(mente)

está na hora de dormir,
cobrir o corpo com o gelo dos dedos,
inspirar o ar insano do quarto,

é chegada a hora de dormir
tombar os ossos no soalho envelhecido,
embalar-se no ranger dos dentes,

(lava os dentes e vai para a cama)

dormir finalmente,
ainda que entre as traças do destino,
dormir para acordar, sorrateiramente


Fotografia de Ed Van Der Elsken

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Manifesto XXII

Paiol

é íngreme a ladeira que se desce,
aos soluços na rebelião,

(olha ali um regato)

catrapum, catrapaz,
abrem-se as feridas nos joelhos,

(então não viste a gravilha manhosa?)

escasseia o ar racionado,
perdem-se as marmitas ferrugentas,

catrapaz, catrapum,
quebram-se os ossos do corpo,

(os bancos de nevoeiro assomam lá ao fundo)

ardem os cobertores de lã,
padece-se no frio do silêncio,

(dorme, aguarda-se a explosão)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Manifesto XXI

General

o general e o seu pesado casacão,
botas sujas de pó,
a fúria,
incrustada nos pulmões de asmático,

o general e o seu velho cavalo negro,
olhos vazios abraçando o campo,
o desejo,
fechado no peito raquítico,

o general e a sua arma ferrugenta,
ouvidos moucos ao murmúrio das serras,
o medo,
escondido nos pés torcidos,

o general e o seu batalhão,
regressam separados às suas casas

as cartas escritas,
perderam-se na berma da estrada


Marcantonio, Melancolia 25 – In Lingua Mortua, Técnica Mista 154×84 cm, Rio de Janeiro, 2006

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Luz (para o Pedro)

naquele ano as plantas acabariam por murchar,
mortas na mercê dos dias,
esquecidas nos degraus que se percorrem,

naquele ano as formigas invadiriam,
os quartos, as arrecadações, as casas,
crentes no abandono,

naquele dia tentando fechar a gaveta frigorífica,
viria a tua mão, as tuas mãos,
os teus braços, o nosso abraço,

naquele dia, do fim anunciado,
o sangue havia de voltar a correr,
até


Blue Star, Joan Miro, 1927

terça-feira, 20 de julho de 2010

Manifesto XX

Esquecimento

Silêncio.

Abertos os portões,
Sobem-se as escadas,
Limpam-se as teias de aranha,
Arranham-se as solas no pó esquecido.

Sobe uma pessoa,
Sobem duas pessoas,
Sobem todas as pessoas,
E descem,
E sobem,
E descem.

Sobem todas as pessoas,
Sobem duas pessoas,
Sobe um pessoa,
E descem,
E desço.

De fundo o silêncio,
O abraço da solidão
Afogado na cegueira.
De novo, o vazio.


Fotografia de David Lynch

Manifesto XIX

autópsiAR

daqui a uns dias pinto o cabelo de ruivo,

acabaria deitada na mesa de inox,
omoplatas relaxadas no frio das tuas mãos,
o cessar da dança do diafragma,

odor a desinfectante esparramado nos pulmões,
músculos contraídos à espreita do bisturi,
olhos fixos nas paredes de mármore,

daqui a uns dias vou ter frio,

acabaria à espera:
da gaveta frigorifica,
da etiqueta sem nome,
sem ti


Fotografia de Jorge Molder

sábado, 17 de julho de 2010

Manifesto XVIII

Acidente(s)

ovo sobre asfalto quente,
o cheiro a borracha queimada,
pneu estraçalhado no meio da estrada,

tendões sem força para operar os membros,
sangue coagulado na tarde,
músculos enegrecidos na semana sem nome,

e agora?
e agora?

aguarda-se:
a violência sobre as frontes,
a chuva nos olhos exaustos,
o pó no coração derrotado

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Manifesto XVII

O brinquedo do menino Joãozinho

o menino Joãozinho quer um brinquedo,
anunciado nas revistas poeirentas
do consultório do dentista,

Joãozinho, o menino, quer um avião,
para com ele voar nos ares cinzentos,
telecomandado por ele só,

tem cuidado, Joãozinho meu menino,
não enchas muito o seu depósito,
quando voar é o que não queres fazer,

tem tento, meu menino Joãozinho,
não subas bem alto no firmamento,
sabendo de antemão que daí irás cair

Manifesto XVI

Azia

era uma vez,
uma menina de tez branca e cabelos negros,
prisioneira num castelo
de altas torres elevando-se no céu,
Pátati,
Pátatá.


era uma vez,
um príncipe, dono de um cavalo branco, voador,
procurando de aldeia em aldeia
aquela que seria dona do seu coração
Pátatá.
Pátati.

e os passarinhos cantavam nos seus ninhos
e as estrelas brilhavam no céu,
e o Sol resplandecia na alvorada,

e pátatá e pátati
e pátati e pátatá

e blá, blá, blá
e blé, blé, blé

e nhã, nhã, nhã
e nhé, nhé, nhé


Fotografia de Man Ray

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Verme

Lesma sem lastro
de suave rastejar nas águas
imundas dos seus esgotos,
displicente criatura
de gestos homicidas,
ocultando-se no canto dos dias,
lombriga de sonhos flácidos
secos ao por do sol

cinco remédios nas prateleiras dos boticários,
duas garrafas de vidro colorido,
cheias,
um tórax rebentando do ar.
Vazio.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Manifesto XV

Necrologia

observas-te no espelho frio,
carcaça despojada de entranhas,
(quero dizer, de coração)
um golpe no abdómen liberta
o cheiro nauseabundo do teu íntimo,
(quero dizer…)
mais um corte no costado,
caem as falsas asas,
(quero dizer…)

pintas um retrato no vegetal enegrecido,
esqueleto de ossos quebrados,
(quero dizer, violentados)
um toque na estrutura de aço,
fogem os vermes da podridão,
(quero dizer…)
martelo pneumático no cérebro
solta-se a cobardia,
(quero dizer…)

quero te!
ler,
na página do jornal…


Marcantonio, Melancolia 40, Técnica Mista, 154×90 cm, Rio de Janeiro, 2006

domingo, 11 de julho de 2010

Manifesto XIV

não sei que roupa vestir,
as veias dilatam-se sobre os braços,
o sangue teima em parar nos pés,

da porta entreaberta do armário,
vejo as cruzetas que se agitam,
e esqueço as traças que lá habitam,

não sei os sapatos a calçar,
incharam-se as passadas,
retraíram-se as unhas na carne esponjosa,

não preciso acorrer ao armário,
sumiram-se as gavetas repletas,
acumulam-se insectos moribundos no fundo,


não sei o ar que respirar,
esqueci-me como se faz


The Bride Stripped Bare by Her Bachelors, Even (The Large Glass), 1915–23, Marcel Duchamp

Manifesto XII

Lista

Quatro pedras na algibeira direita,
Uma qualquer mão na esquerda da algibeira,
Seis ondas geladas rasantes,
Uma pausa.

Três raios de sol fulminantes,
Um rosto queimado no esquecimento,
Duas sombras inconvenientes,
Uma pausa.

Um cigarro, dois cigarros, um maço,
Um copo cheio, um copo partido,
Uma doença. Um tu.
Uma pausa.

Manifesto XIII

Ter e não ter

Tens um quarto cheio, cidadão.
Tens o pincel com que o pintas, cidadão.
Tens o ar em que te afogas, cidadão.
Tens a água que te desliga, cidadão.

Cidadão, tens o quarto vazio de nós.
Tenho eu o serrote, cidadão



Marcantonio, Melancolia 36, Técnica Mista, 81×156 cm Rio de Janeiro, 2006

sexta-feira, 9 de julho de 2010

surrealidades


“O fundamento de toda a experiência tem de estar fora da experiência.
E, assim, para a Poesia, o Oásis e o Deserto são as tenazes que a geram, já que a realidade não se baseia só na substância das coisas, mas também no seu caudal e relacionalidade. Tudo se define pelo diferente. E para a Ideia da Totalidade de uma Vida Única nós acreditamos na conjugação futura desses dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o sonho e a realidade. Acreditamos numa Realidade Absoluta, numa SURREALIDADE se é lícito dizer-se assim.”
Mário Cesariny, Primavera Autónoma das Estradas

- acabo de perceber como surrealisticamente não sou surrealista: visto-me e disponho-me, todos os dias, com a experiência a servir-me de espelho…
- pois, eu sempre percebi que sou surrealista, visto a roupa que não me serve e passeio nesta fogueira das vaidades.
- não te serve… mas fica-te bem! quanto à fogueira: deixa arder…
- deita-lhe gasóleo! até porque as cruzetas se fizeram para albergar cadáveres esquisitos, queimados…

a verdadeira experiência surrealista (porque não vive apenas de si mesma, mas das intersecções que proporciona) é poder efabular sobre trivialidades absolutas e essencialidades relativas (na verdade, e sem pruridos linguísticos ou conceptuais, sobre tudo e sobre nada) com a amiga e poeta laura alberto do blogue im.possibilidade, seja no cosmopolita e variegado porto, seja numa popularmente pitoresca freamunde…

e com a pressa em publicar o texto, limitei-me a copiar as palavras do mestre, desculpa Jorge Pimenta!

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Manifesto XI

Estrangeiro

o que buscas no fim da estrada?
agora que a luz fosca
serve de companhia ao nevoeiro,
será que encontras o destino?

no canto da sala, um piano
que ninguém ousa tocar
no fundo do corredor, um armário
repleto de cabides vazios

o que buscas no fim de ti?
o pó que inspiras
contamina-te o peito,
será que tens coragem, estrangeiro?

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Manifesto X

Tapume

acumula-se a terra na faringe,
assomam pedras sobre o peito,
o ar satura-se de medo,
escorre a dor nas paredes do quarto,
abre-se a boca cerrando os dentes,
perde-se o grito no breu,

estou aqui,
aqui estou,
prisioneira numa esquina
dobrada sobre ti,
visionária da esbatida imagem
do vazio no silêncio,

estou aqui
aí não estou,
estive


Almada Negreiros

terça-feira, 6 de julho de 2010

Manifesto IX

O morto

agarra-se a espalda,
amedronta com o seu bafo frio,
impedem nos as suas mãos de gigante,

cerca a luz que cai,
corrompe o esvaziar dos dias,
dilui os fios que fogem,

o morto

nada pesa mais que um morto,
a não ser, talvez,
um vivo morto



Marcantonio, Melancolia 7 – Scyllam et Charibdim, Técnica Mista, 88×160 cm, Rio de Janeiro, 2005
http://cadernosdearte.wordpress.com/

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Pásion: Rodrigo Leão-Cinema Ensemble-Celina da Piedade

Carta

Daqui,
está um calor infernal, demónios
apenas o suor afaga o peito cru.

Daqui,
imersos em fria água, gélida
as ancoras apodrecem ao luar.

Daqui,
engole-se a sede, seco
o sangue que não corre.

Daqui,
procura-se a corrente que não leva, ácido
a rede que não mata, mata!


Marcantonio, Melancolia 18 – Digital, Técnica Mista, 156×91 cm, Rio de Janeiro, 2006
http://cadernosdearte.wordpress.com/

Manifesto VIII

Corcunda

botas assentes em solo firme e pés sempre molhados,
esboça um sorriso e partem-se os dentes
salta-lhe o peito e não tem coração,
abrem-se as pálpebras e os olhos não vêem

enrola os braços e caem-lhe as mãos


Marcantonio, Melancolia 15, Técnica Mista, 160×88 cm, Rio de Janeiro
http://cadernosdearte.wordpress.com/

sábado, 3 de julho de 2010

( )

deito o corpo na água fria,
deixo que deslize pela corrente,
não há margens,
não há foz,

apertam-se as brechas,
escarpas cortantes sobre o peito morto,

afogo a mente na água fria,
que se apague a memória,
não há braços,
não há lábios,

carrega-se o tambor da pistola,
insinuante sobre o crânio,


Fotografia de Man Ray

Manifesto VII

Pára(grafo)

que mais viria por aí?
desisti da pergunta, fiquei à espera…

que mais iria escutar?
cansei de ouvir o teu silêncio…

que mais traria em mim?
secaram-se os braços,
evaporou-se o sangue,
fica o resto de um nada.


Rayographie, Man Ray

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Brincando, tipo Cesariny

Olá!

Pequeno gato pardo,
Afiando as suas unhas.

Sorri, ri,
Fim!

Um, dois
Fim!

Abraço, abraço,
Fim!

Beija, não beija,
Fim!

Deseja, pára,
Fim!

Afiando as suas unhas,
Gigante gato pardo.

Adeus,
Fim!


Mário Cesariny

Estudo XLVIII

Reflexo ou Poema da raiva

serei pó
até que o vento me carregue
(e não tu)

serei gota em terra árida
até que encontre o rio púrpura
(e não tu)

serei o esquecimento
até que abracem o meu corpo
(e não tu)


Barbette Applying Makeup, Man Ray, 1926

Manifesto VI

Pausa sustida

caiu uma estrela em Marte,
ninguém a ouviu

secaram as águas nos homens,
ninguém o viu

apodreceram os braços cansados,
ninguém o sentiu

ficaram os manequins sentados,
todos os visitaram


Mannequin, photograph gelatin silver print, Man Ray, 1939

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Manifesto V

Horas

sabia que chegaria a hora,
perdida em mais um dia vazio,

ácido derramado sobre as entranhas,
amedrontando o bicho dormente,

braços que apertam,
no silêncio que nos cerca

sabia que chegaria a hora,
de deixar a morte pousar


Woman With Long Hair, 1929, Man Ray

Manifesto IV

Corpus

se por acaso
entre um vento e um sopro,
avistares um qualquer cadáver,
deixa-o,
deixa-o ficar,
em silêncio,
ele guarda a saudade de um,
de dois,
de nenhum,
abraço


Untitled, Man Ray