«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Manifesto III

Acorda.

Acorda,
dessa letargia dos dias,

Abre,
os olhos para fora da tua escuridão,

Abraça,
o tempo que se esvai,

Bebe,
até ao sal da pele,

Beija,
o fumo solidificado sob a ombreira da porta.

Estudo XLVII

Vento

juntou os fios de um destino,
traçou o precipício do fim,
com os pés dentro de água,
afogam-se as esperanças etéreas

fugimos longe, bem longe
os corpos que fomos,
os cadáveres a que tornamos,
o futuro erguido em pó


Dust Breeding, May Ray, 1920, printed ca. 1967

Manifesto II

Maldição

Que se calem as folhas agitando-se nas árvores,
não consigo ouvir a tua voz.

Que cesse o vento as suas lides,
não sinto os teus braços.

Que se intimide a chuva nos céus altos
não sei do sal dos teus lábios.

Que se apague este sol insano,
não sei continuar.




Mulher Cão, Paula Rego, 1994

Um dia

Quis um dia,
meu corpo junto ao teu,
deitar nas vozes abafadas,
prisioneiras de teu peito.

Quis um dia,
meu sonho ao lado do teu,
erguer nuvens sorrateiras,
no gelo de nossos dias.

Quis um dia,
minha boca com a tua,
esquecer as âncoras de aço,
perder a vida que resta

Resta-me o sono da perda,
Na insónia do desejo.


A Sesta, 1939, Almada Negreiros

terça-feira, 29 de junho de 2010

Manifesto I

Sete palmos de terra

Eu, eu própria,
Munida de pás coragem,
Olhos húmidos de sangue,
Veias secas, mirradas de dor,
Braços laços de nada,

Eu, eu própria,
Deitarei dez pazadas de terra
Vinte pazadas de terra,
Tinta pazadas de terra
Mil pazadas de terra,

Eu, eu própria,
Hei-de enterrar essa triste figura!


Here, This Is Stieglitz Here, 1915, Francis Picabia

Estudo XLVI

Pergunto que tu (não) respondes

E se de repente fica frio?
Na orla dos abetos espreitam os lobos famintos.

E se de repente cai uma tempestade?
No carreiro do húmus assoma a serpente.

E se de repente se ergue o vento?
Do alto do penhasco são minúsculas as tuas mãos.


Mulher sentada (O retrato de Muriel Belcher), de Francis Bacon

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Acendi um cigarro, que me esqueci de fumar,
Longe,
A cidade roubou-me a tua memória,
Aqui,
As paredes pintam o teu corpo.

Enchi um copo, que não me lembro de esvaziar,
Distante,
Os ecos da vida perdem-se no acaso,
Perto,
O vento fala na tua voz.

Abre-se a janela, o ar não entra,
Consome-se o silêncio,
Esventrado os restos do cadáver vazio,
Afagando a cegueira
Especada sobre a porta, aberta?


Fotografia Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Estudo XLV

Gangrena

pelo menos hoje:

quero dormir,
nem que seja sozinha

quero ouvir,
mesmo que seja o silêncio

quero rasgar este corpo,
sem peito, sem jeito,

estalam as vigas do tecto,
rangem as tábuas do soalho,

mate-se o cadáver,
já,
pelo menos hoje

Estudo XLIV

Suspiro

que venha abrupta,
decidida entre o ar que sufoca,
rasgue a carne sem mercê,
termine o suplicio de um coração cego,
estranho ao seu redor

que venha, rápida

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Estudo XLIII

Palhaço

ri-se,
enquanto chora as lágrimas invisíveis
da presença da solidão

fala,
tentando esconder o silêncio
testemunha do desespero

EU PALHAÇO?

brincando no limbo
da sua impossibilidade


Fotografia Laura Alberto

Estudo LXII

Perda(s)

passava uma gaivota
gritando ao crepúsculo:
nem toda a atmosfera
merece o ar que expiras

roncava o sol
ao silêncio da noite:
nem todo o solo
será calcado por ti

brincava a chuva
nos dias longos:
ao menos toco eu
esse teu corpo desfeito

Despedida

o mar acabaria por vazar,
à mercê do sol, um corpo abandonado
abrigando as entranhas ressequidas,

a pele acabaria por estalar,
e estranhamente até o sal desapareceria,

(a pergunta:
Onde estás?)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Estudo LXI

Luxúria

assoma a noite
fria no horizonte,
murcham os corpos,

do vidro estilhaçado,
sorvo o veneno do teu calor,

libido que atiça,
são tuas mãos nos meus braços,
fugindo ao fogo que nos cerca


Canibalismo, Salvador Dali

domingo, 20 de junho de 2010

Estudo LX

Pergunta(s)

de que vale possuir as letras?
domar todas as palavras?
quando o ser acaba vazio,
na queimadura do gelo que sublima

?


Francis Picabia

Estudo LIX

Vil

entre um segundo e um dia,
uma carícia e um desejo,
ficam os minutos do desespero,
numa réstia vã de éter

um nada


A Face da Guerra, Salvador Dali, 1940

sábado, 19 de junho de 2010

Estudo LVIII

Garrote

enquanto brincas na língua de areia,
não te esqueças das vagas frias,
acariciam as coxas,
violam o sonho


FRIDA KAHLO: “The broken column (self-portrait)”
1944, oil on canvas, Museo Dolores Olmedo, Mexico
© Artists Rights Society (ARS), New York/VG Bild-Kunst, Bonn

Estudo LVII

Sangre

ao menos deixa-me dormir
num só sopro de ar,
deitar na oferta da solidão,

deixa-me ao menos dormir,
aquecer o peito no frio que exala,
repousar no sonho mirrado,

ao menos deixa-me esquecer,
o corpo passado,
pousado em teu sonho

deixa-me ao menos esquecer,
o coração seco,
esquecido na ausência do toque,

deixa-me cair na lâmina de aço


Raoul Hausmann, Cartaz-poema 1918

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Estudo LVI

Xeque

impasse silencioso,
perdem-se os dias em barulho,
impasse imóvel,
ganha-se o desejo no toque reprimido

jogam-se os dados,
aguarda-se em desespero,
lançam-se os dados,
seja rápido o mate


Andy Warhol
Electric Chair, 1965

terça-feira, 15 de junho de 2010

Estudo LV

Fuga

aí, no bosque onde te guardas,
longe da luz do sonho,
esquecido entre a voz do silêncio,
ainda deixas fugir o teu odor,

aqui, na selva que habito,
afastada da tela da vida,
silenciada pela voz do esquecimento,
ainda sinto o cheiro do teu quarto

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Estudo LIV

E se eu?

e se me calasse,
falavas por mim?
e se fechasse os olhos,
dirias o que vias?
e se parasse,
andavas por mim?
e se deixasse de ter medo,
ias tu por mim?


Red Disaster, Andy Warhol

Estudo LIII

13

Jerónimo lia em voz alta,
as velhas histórias infantis,
em voz alta lia,
ignorando os que por si passam,
entre risos e comentários
era eu na sua história,

e Jerónimo em voz alta lia,
viajava eu na sua história,

lê Jerónimo,
Jerónimo lê,
a minha infantil história


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

sábado, 12 de junho de 2010

Estudo LII

Arrependimento ou Simples Falta de Coragem

engoli o ar
quando devia ter falado,

não abri os braços
quando era a ti que procurava,

escondi a boca
desejosa por te degustar,

segui o trilho
sonhando permanecer,

fechei os olhos
perante nossas figuras prostradas,

fingi viver
num jogo perdido,


Fotografia de Jorge Molder

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Estudo LI

Enlouquecer

e de repente,
não são as vagas contra o corpo,
nem o vento que acaricia o cabelo,
não é a chuva que lava a alma,
nem o ar que me entranha

e de repente,
és tu que me tomas em silêncio,
embarcas-me no teu dorso,
traças as curvas do meu corpo,
sacias a sede da minha boca,

e de repente,
somos pedaços de terra,
banhados por mar,
sou um pedaço de terra, banhado no teu mar

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Estudo L

Aos pedaços

sabes que tenho medo,
deitada nos teus lençóis,
acariciada pela tua respiração,
ao acaso no quarto,

sabes que tenho medo,
quando viajo no teu corpo,
e arquejo o meu peito
secretamente preso no teu,

sempre soubeste que tenho medo,
quando me tomas na tua boca

sabe que já não tenho medo,
quando me engoles de uma só vez,
aos pedaços

Chamada

chama a noite,
os corpos desnudos, deitados,
respirando mecanicamente,
contornos desenhados pelo frio dos lençóis,

no silêncio dos quartos,
contorcem-se os troncos suavemente,
apertam-se as pernas em desespero,
o bafo quente é visitante,

aí, na solidão dos dias longos,
onde habita o pecado,
deixamos os corpos tenros,
arder até ao fim


Foto Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

terça-feira, 8 de junho de 2010

Vida(s)

Um segundo,
vê-me.
Dois segundos,
nada.
Três segundos,
nada ainda.
Quatro segundos,
toca-me.
Cinco segundos,
toco-te.
Seis segundos,
Parámos.

(Silêncio)

Sete segundos,
beijamo-nos.
Oito segundos,
a repetição.
Nove segundos,
e de novo.
Dez segundos,
a tempestade.
Onze segundos,
o silêncio.

Séculos apenas,
sozinhos.


Skull, Andy Wharhol, 1976

domingo, 6 de junho de 2010

Mad Rush

Estudo XLIX

Desculpas?

tens razão, devia ter trazido as maçãs,
perdi-me entre árvores de betão,
seduzi os pássaros do alcatrão,

tens razão, nunca faço o que dizes,
bebi do néctar proibido,
fui mordida por lobos que uivam,

tens razão, venho sempre sem nada,
mas sabes?
na verdade, eu comi as maçãs


Sem Título, Mário Cesariny

Estudo XLVIII

Despertar

fecho os olhos,
é o teu abraço que me envolve,
fecho os olhos,
o vento agita a seara de trigo,
fecho os olhos,
os teus lábios na minha boca,
fecho os olhos,

e é o teu rio em mim,
de olhos bem abertos


Les jours gigantesques, René Magritte

Estudo XLVII

Sábado

não estou aqui,
permaneço ao teu lado,
mas não sou mais que uma fotografia,
condenada ao silêncio de uma folha de papel,

não estou aqui,
o sorriso que te devolvo,
é mera pintura de um artista anónimo,
esquecido ao bater das horas,

não estou aqui
e também não sei onde vou
(só sei que não estou)


Gun, Andy Warhol, 1981-1982

sábado, 5 de junho de 2010

Estudo XLVI

Armário

quando penso em ti sorrio,
o choro acabou por dar origem ao silêncio,
o teu rosto é agora uma névoa que se espalha
nas frias noites da vida,

quando penso em ti, agora consigo sorrir,
as lágrimas secaram nos meus olhos,
o teu corpo transformou-se em água,
despiu-se de mim,

quando penso em ti, já não sorrio,
já não penso, quando penso em ti


Andy Warhol, Untitled (Skeletons) 1976-1986

Praesens III

Em resposta ao meu Praesens II, o meu amigo João Miguel deixou-me ficar um belissimo poema, é justo que eu o publique aqui.
Obrigada João.

O silêncio
(era preferível o silêncio!)
é o prolongamento do túnel escuro
por onde fugimos
A saída era voltar atrás
onde nos encontrámos
Lá fora gravita o sol
gravando em fogo
um futuro
suspenso
Mas avançamos ao acaso
feridos pela noite

João Miguel Ferreira

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Estudo XLV

Despedida

posso ficar,
apenas um miúdo instante,
o tempo de abrires os lábios,

posso ficar
apenas um suave esgar,
o tempo de saborear o teu sal

posso ficar,
mas sê rápido,
só tenho um segundo para beber desse teu mar


Edvard Munch, Death and Love, 1894

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Estudo XLIV

Banheira

mergulhei naquela água fria,
a mesma azulada de sempre,
deixei que subisse até às narinas
e acariciasse o meu cabelo

os azulejos brancos ainda reflectem a tua imagem,
as pernas entrelaçam-se no tango bizarro de sempre,
dou por mim enterrada no teu peito,
prisioneira nos teus braços,

destapo o ralo
e deixo que a água escoe,
só sei que tenho frio, muito frio


Knives by Andy Warhol

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Praesens II

Continuamos:
Sozinhos,
Na escuridão.
Sanados,
superficialmente.
Vozes que se calam.
Corações mirrando aos dias.
Estamos:
Distantes,
Ocultos nos nossos postos,
À queima-roupa.

BASQUIAT, Jean-Michel. "Self Portait" (1982, óleo em tela. Coleção particular)

Estudo XLIII

Farmácia

as baratas beberam todo o perclorato de ferro,
continuam recatadas nos cantos,

procuramos o remédio infalível
para as fracturas expostas,
porque o sangue já não corre lá,

adoçam-nos os braços com palavras vãs
abraçam-nos os lábios com dedos de lã