«Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.»
de Paul Auster
"Saber que será má uma obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. […] O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida."
de Bernardo Soares

domingo, 30 de maio de 2010

Estudo XLII

Pensão Monumental

as letras olvidaram o talhe
e perderam o teu nome,
num qualquer banco de jardim,
o nosso banco,
flutuam agora, entre as pernas que passam,
castigadas pelos pés do tempo,
à deriva entre as mãos dadas dos amantes,

o nosso banco
já não é o nosso banco,
as pedras calcárias
não nos reconhecem os passos,
e até as nuvens fogem indiferentes
aos mortais cá em baixo,

o letreiro fechado envelhece,
fixo na porta do café que já não abre.


Fotografia Laura Alberto

Precipício em fim

O silêncio com que preenchemos os nossos dias,
acabaria por revestir as paredes do quarto,
tornando-se no familiar (des) conforto.

Nas jarras outrora povoadas de flores,
jazem caules ressequidos,
abandonados pelos vermes da decomposição.

Nos interstícios do ar saturado,
pairando sorrateira,
a lamina de aço da gélida vingança.

Tem finalmente o guerreiro,
A força da espera,
À sua mercê o corpo não-habitado.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Estudo XLI

Devil´s teeth

tenho as marcas dos dentes no meu pescoço,
no lado esquerdo,
louca por arder nesse fogo,
sabendo que no final apenas restará a cinza
dos corpos desfeitos na noite

terça-feira, 25 de maio de 2010

Despir-Vestir

Vestes e despes a tua pele
mas deixas ficar o teu perfume.

Subo pelo tronco em espiral
à procura do fruto proibido,
lambendo a maça de Adão,
saboreando o teu suor.

Despes e vestes a tua pele
mas deixas ficar o teu perfume.

Percorres as minhas coxas,
com dedos frios de volúpia,
deitas-te no meu ventre
onde desejas penetrar.

Despimos e vestimos as nossas peles,
lavamos o pecado em que nos enterramos.

Estudo XL

As mulheres da minha família carregavam sacos de farinha.
As mulheres da minha família costuraram as calças dos soldados.
As mulheres da minha família têm olhos vincados das noites sem dormir,
dedos calejados dos pregos na madeira dos seus caixões.

E eu chovo sobre Atlântida,
mergulho no fundo oceano,
faço dos braços amarras cobertas de algas,
deixo os peixes frios habitar nas minhas coxas.

As mulheres da minha família resistiram,
E eu, chuva!


Fotografia de Pedro Polónio, http://club-silencio.blogspot.com/

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Estudo XXXIX

na mesa do café

fumei todos os cigarros do nosso maço,
folheando as páginas de uma qualquer história,

mesmo mergulhada nas nuvens,
vou tendo frio nos pés,

lá vão as pedras, sorrateiras, rolando calçada abaixo
eu fico aqui sentada à espera do isqueiro,

o fumo não chega
para escrever no teu corpo

a voz não canta o teu nome

é chegada a hora de fechar


Ed van der Elsken
Title, Negative date:
Untitled (Paris), c. 1950
www.hartmanfineart.net/artist/gallery/61/

domingo, 23 de maio de 2010

Senhor

Amo ou não amo?
Amo ou não amo?
Amo ou não amo?

Ah, e essa chuva que teima em cair,
sem força para nos fazer seguir.

Amo ou não amo?
Amo ou não amo?
Amo ou não amo?

Ah, e esse vento soprando de leste
o alvoroço de qualquer peste.

Amo ou não amo?
Amo ou não amo?
Amo ou não amo?

Ah, e esse mar todo afoito
forçando os peitos num oito.

Não amo ou amo?

Estudo XXXVIII

Diálogo

- Com esse perfume era capaz de te morder.
- Será que tu sabes que eu deixava?…

(Pausa)

- A garrafa, aquela com que andaste ao pontapé continua na berma da estrada.
- Deixa-a estar. Ela espera.

(Um dia)

- De que foges tu?
- De nada, apenas tenho medo das palavras à queima-roupa.
Olha, estou à espera que me mordas.

Estudo XXXVII

Língua

deitei-me na areia seca,
à espera que o mar moldasse
o corpo, que outrora teve a forma das tuas mãos,
nas tuas mãos

sábado, 22 de maio de 2010

Coragem

os girassóis estão secos
voltados sobre o solo,
as sementes mirraram
no peito,
dos que braços não tiveram
para te deixar pousar

Estudo XXXVI

Dor de cabeça

provavelmente sempre tive,
este latejar contínuo das têmporas,
do inevitável pensamento impossível,

talvez se tenha secado a água,
cansada de esperar o jorrar
da fonte em sonho,

estupidamente vai se retendo,
este inútil vislumbrar
dum qualquer (não) amor,

preciso é de uma aspirina,
não encontro o utópico revolver

Homicídio

senti necessidade de te visitar,
ver o corpo que habitas,
desenterrar-te dos vivos,
revolver os vermes com que te cobres,
descobrir a boca
que lavas religiosamente,

senti necessidade de perceber,
o silêncio com que falas,
a displicência que deixas no toque,

hoje senti vontade de te apresentar,
a lâmina oculta
com quem cortas, matematicamente,
as tuas vitimas

Estudo XXXV

Adamastor

não penses tu que te temo,
ó bicho asqueroso no limiar,
bífido de alma,
parasita de corpos contrafeitos,
tentáculos serpenteando,

Não penses tu que te temo.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Estudo XXXIV

Guarda-fatos

pendurada num cabide de ferro
a pele que se despe,
oculto no fundo da gaveta,
o coração ressequido
da estranha paixão

Estudo XXXIII

( )

Corta-me,
deixa o sangue sair,
lavar as veias conspurcadas
desses esgares de tempo
em que o pó era único
e os braços corriam o mundo

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Estudo XXXII

Duplicação

mil vezes prometi
não dizer ou escrever,
morre o animal
feroz, duro, bruto,
fica o quarto vazio

terça-feira, 18 de maio de 2010

Estudo XXXI

Cigarro

acabaria invadida pelo som das folhas,
olhar repleto dos plásticos que se agitam,
longe,

na calçada não restam as pedras,
no peito apenas o teu lugar vazio,
como é
habitual

Estudo XXX

Self-service

uma noite a mais
sem dormir,
vermes arrastam suas carcaças inúteis
entre os despojos dos dias,

servem-se em bandejas de prata
gelados, CUIDADO
este coração findou a validade

Estudo XXIX

Pedra

ninguém disse que as mãos
deviam estar abertas,
para que o pecado se sirva,

FRIO


Fotografia Laura Alberto

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Estudo XXVIII

Detergente

teu perfume abandonou a roupa
que jaz sem forma no varal,

na solidão da noite encontro o copo vazio
sob a mesa do nosso contentamento,

restam as águas
afogando os amantes.

Estudo XXVII

Quadrado

primeiro risco,
segundo risco
paralelo,
terceiro risco
perpendicular,
quarto risco
paralelo ou perpendicular?

esboço ou estudo?

acabamos condenados a duas dimensões

Cárcere

podes ficar
mas em silêncio,
peço-te é que não agites
o mar nas paredes,
receio que uma tempestade
me leve a afogar

domingo, 16 de maio de 2010

Estudo XXVI

Noite

desço a espiral que se aperta,
deixando que as luzes amarelas da cidade
desapareçam no nevoeiro,

longe ouço a tua voz
enquanto recordo o acre sabor a ti

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Estudo XXV

Deixei que a chuva me cobrisse.
Estes dias são difíceis,
Dizes que tenho que respirar,
Mas continuo a não o conseguir.

Fugiu o ar,
Levou com ele as memórias
E o tempo dói mais do que nunca.

Restam as lápides,
Quebradas sobre o solo,
Na dobra do irremediável.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Estudo XXIV

Sonho

sonho,
contigo,
nas noites que estou acordada,

vejo-te
sempre,
nos dias que passo a dormir,

e tu,
nesse quarto branco,
de escassos metros quadrados,

e eu,
neste colorido torrão de terra,
nauseabundo de infinito

dias

um dia,
julguei já ter dito,
tudo o que me assaltava,
ter gravado a ferros,
num mirrado coração,
toda a dor,
envolvida em todo o pecado,

um dia,
subi,
desci,
parei,

um dia,
lambi esse teu fruto
proibido,
para que o seu veneno,
me queimasse,
libertando a seiva,

um dia,
não confundi,

um dia,
amarrei

terça-feira, 11 de maio de 2010

Mesa

Finalmente repousa,
na mesa de mármore branco,
o cadáver assombrado do ser,
de entranhas expostas,
aos vermes que assomam,
coração mirrado,
pelo peso dos longos dias,
seco na ausência da palavra,
pele gasta ao esquecimento do toque,
encoberta por falsas mascaras
de riso e de choro.

AUSENTE


Fotografia Laura Alberto

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Estudo XXII

Sótão

não consigo ouvir,
o pesado som da gota,
sobre a terra seca,

não carrega o vento,
pelos forrados céus,
a memória da tua boca,

não aquece o sol,
o esqueleto frio,
do desejo que morre,

não cai o coração,
do rasgão da alma,

não

fotografia Laura Alberto

Estudo XXIII

Cansaço.
Inspira.
Expira.
Cansaço.
Abre os olhos e vê.

Cansaço.
Expira.
Inspira.
Limpa os ouvidos e ouve.

Cansaço.
Inspira.
Expira.
Abre os braços e espera.

Cansaço.
Inspira.
Inspira.

REBENTA!

the last one



domingo, 9 de maio de 2010

Não há barcos para Ítaca

Estou cansada deste soalho,
rangendo às nuvens que passam,
sorrateiras pelas frestas das paredes.

O toque do suor,
escorrendo pelas pernas,
provocando o tímido esmorecer.

Ergue-se o corpo,
para lá da porta fechada.
Os olhos contemplam o Azul,
enquanto o indicador desiste,
e os cavalos fogem voando.

Poema cru da solidão

Não te preocupes,
estou bem,
apenas me cansei

de ver,
de ouvir,
de falar,
de sentir,
de querer,
de sorrir,
de chorar,
de ser,
de não ser.

Apenas me cansei,
de me fingir bem,
não te preocupes.

O meu cavalinho radioactivo

Do dorso do meu Azul cavalinho,
consigo avistar o jardim esquecido,
onde dormem mil pirilampos,
brilham as bagas vermelhas, rolando do teu peito.

Espera.
Não as mordas já.
Deixa-me aí chegar.

Estudo XXI

Alfredo, finalmente

duas metades não fazem uma árvore,
um arranha-céus não é uma cidade,
a ponte não a atravessa
e o rio não te traz de volta


fotografia de Laura Alberto

Estudo XX

( )

Um aceno,
aqueles que estiveram,
segundos,
dias,
anos,
anos,
e anos,
entrevados numa folha de papel,
mergulhados em diluente quente.

sábado, 8 de maio de 2010

Jorge, olha o que eu encontrei!

Os penedos não são felizes. Vede-os contraídos numa trágica forma em que sobressai o vazio ponderável da sua massa empedernida. E a montanha de que o penedo é uma parte? E o planeta que é um prolongamento da montanha? E o Universo? E depois?

Teixeira de Pascoaes (1877-1952), Aforismos
(selecção e organização de Mário Cesariny)

Estudo XIX

Aviso

Hoje à noite vou deitar-me na tua cama.
Mesmo que embalada em utopia.
Vou dormir nos segundos que me restam.
Com os olhos abertos.

Estudos XVIII

Estás acordado?
Estarás a dormir?

O mármore branco não responde,
enquanto a água teima em cair.

Ping. Ping. Ping.

Olha,
Estás aí?
Estarei eu aqui?

O ferro contorcido não se cala,
inibe-se a luz-guia.

Crash.

Mortos estamos.
Expulsos seremos vivos.

Estudos XVII

Foi como se

Foi como se…
De repente.

O Azul abriu-se,
ergueram-se as finas montanhas de terra Verde.

O Universo calou-se,
deixou que o fumo escrevesse.

Foi como se…
Sem contar.

O sonho saiu da cintura dos deuses.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Estudo XVI

?

De que cor são os teus olhos?

Azuis, quando fitam o mar
em que partem.

Verdes, afundando-se na terra
que avidamente os devora.

Castanhos, no segundo, no minuto,
nas horas em que desistem.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Súplica

Traga as vagas,
Abarca as milhas.
O frio vai cercando o coração,
Deixando que a escuridão cerre os olhos.

Solta as velas,
Foge da ilha.
A solidão queima os ouvidos,
Nos dias que pesarosamente vão nascendo.

Liberta o perfume,
No vento que foge,
Sabes que acabará por chegar.
Por chegar a algum lugar.

Estudo XV

Cadáver

Cabelos de fio aço,
rompendo a carne cansada
das tardes mergulhadas em enxofre.

Olhos de globos de vidro,
estilhaçando-se
na escuridão que se liberta.

Meu corpo, teu cadáver,
quando o deixas ir,
na maré que o lava.

Estudo XIV

Árvore

Da primeira vez,
Que subi no teu tronco,
Ficaram as cascas nas unhas.
Não as tirei.

Da segunda vez,
Deixaste lamber as folhas.

Da terceira vez,
Tua seiva correu dentro de mim.

Já não me lembro da última vez.

Estudo XIII

Viagem

Se fores, vai.
Deixa ficar a cidade num olho,
O regador no braço esquerdo.

Quando lá chegares, telefona.
Não há número que ouse falar.
Baixinho.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Estudo XII

Banquete

Cem segundos a perder.
Servem-se os corações em bandejas de porcelana,
As línguas gotejam entre rumores de desejo,
Contraem-se os tendões, apertam-se os músculos.

Inspira-se o ar bafiento,
Calmamente lambem-se os copos de cristal,
Avidamente sorvem-se os grãos de pólen.
Cem segundos que restam.

Um dia

Um dia.
As lágrimas secaram.
A alma mirrou.
O suor evaporou-se.
Quebraram-se os ossos.
Perderam-se os tendões.
Apodreceram os músculos.
Infectou-se o sangue.

E agora?


Fotografia Laura Alberto

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Estudo XIX

(Cidade)

Se fores um desenho,
ficas sozinho,
estarás destinado a amarelecer
na velha tarde vermelha.

E ponto final.

Fotografia Laura Alberto

Testemunho, só

Ficou a porta entreaberta,
só entrou o pó.
Comeram-se os segundos ao tempo,
o relógio nunca parou.
Enxugou-se o corpo,
que acabou afogado em suor.

Limpam-se as facas, desinfecta-se a mesa,
Vai se caindo na espera.

domingo, 2 de maio de 2010

Foz

Enrolo um grão de areia,
Numa lembrança remota de ti.
Sentada no pontão, as vagas
Nada trazem,
Tudo levam.

Chispam as ondas,
Salvas ao albatroz.
A linha de alcatrão é extensa
E eu tenho que a beijar,
Em memória de ti.

Estudo X

Tango

São precisos dois.
Dois para o tango.

Tu nunca me convidaste,
E eu, simplesmente não sei,
Dançar.

Estudo IX

Maratona

Vamos ver quem é mais rápido,
Pequeno sardão,
Tu no muro,
Eu no alcatrão.

Vamos ver quem resiste mais,
Pequeno sardão,
Eu no muro,
Tu no alcatrão.

Sobrevives com o rabo cortado
E eu com o coração vincado.

Estudo VIII

(Maria-rapaz)

Lembro a rapariguinha com cabelo à rapazinho
Que saltava no cimento,
Sozinha.

Parei o carro para colher uma papoila.
Morrem rápido.
Melhor será ficar aí.

Onde está o rapazinho?

Estudo VII

(Hospício)

Sai daí,
Rápido.
O cheiro a desinfectante provoca-me
Náuseas.
Meus lábios não sabem voar no teu quarto
Branco.

sábado, 1 de maio de 2010

Estudo VI

(Viciados)

Não posso estar sempre a cravar-te
Cigarros.
Não podes pagar-me todos os
Cafés.

Bem, sabemos onde isto vai dar:
O outro no um,
O cru no nu.

Estudo V

Caem pedaços de ti da minha boca.
Pausa.
O peito é vincado pelo teu.
Pausa.
Calmamente o gelo derrete entre os lábios.
Pausa.
E o mundo lá fora agita os ramos dos que ousam.

(Será pausa?)